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Se Houver Amanhã - Capítulo 2

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Mensagem por Humberto Lopes Seg Out 01, 2012 6:16 am

Filadélfia
SEXTA-FEIRA, 21 DE FEVEREIRO 8 HORAS


Tracy Whitney saiu do saguão do seu prédio de apartamentos para
uma chuva implacável, misturada com neve, que caía imparcialmente
sobre as polidas limusines que desciam pela Market Street, conduzidos por
motoristas uniformizados, e sobre as casas abandonadas e, fechadas com
tábuas dos cortiços do norte de Filadélfia. A chuva lavava as limusines,
deixando-as ainda mais limpas, ao mesmo tempo em que convertia numa
confusão molhada o lixo acumulado na frente das fileiras de casas
negligenciadas. Tracy Whitney estava a caminho do trabalho. Seu ritmo era
animado enquanto seguia para leste, pela Chestnut Street, na direção do
banco. Tinha de fazer um esforço para não se pôr a cantar em voz alta.
Usava capa e botas amarelas, um chapéu de chuva também amarelo, que
mal conseguia conter uma massa de cabelos castanhos lustrosos. Tinha
vinte e poucos anos, um rosto exuberante e inteligente, a boca cheia e
sensual, olhos faiscantes, que podiam mudar de um suave verde-musgo
para um jade escuro de um momento para outro, um corpo esbelto e
atlético. A pele passava por toda a gama de branco translúcido a um rosa
profundo, dependendo se estava irada, cansada ou excitada. A mãe lhe
dissera certa ocasião:
─ Sinceramente, criança, há ocasiões em que não a reconheço. Você
muda de um instante para outro.
Agora, enquanto Tracy descia pela rua, as pessoas se viravam para
sorrir, invejando a felicidade que brilhava em seu rosto. Ela retribuía aos
sorrisos.
É indecente para qualquer pessoa ser tão feliz, pensou Tracy
Whitney. Estou casando com o homem que amo e terei o seu filho. O que
mais alguém poderia pedir?
Ao se aproximar do banco, Tracy olhou para o relógio. Oito e vinte.
As portas do Philadelphia Trust and Fidelity Bank não se abririam para os
empregados por outros dez minutos, mas Clarence Desmond, o vicepresidente
senior, no comando do departamento internacional, já estava
desligando o alarme externo e abrindo a porta. Tracy gostava de assistir ao
ritual matutino. Ficou parada na chuva, esperando, enquanto Desmond
entrava no banco e trancava a porta.
Os bancos do mundo inteiro possuem misteriosos processos de
segurança e o Philadelphia Trust and Fidelity Bank não era exceção. A
rotina jamais variava, a não ser pelo CÓDIGO de segurança, que era
mudado todas as semanas. O CÓDIGO daquela semana era uma persiana
parcialmente abaixada, indicando aos empregados esperando lá fora que se
realizava uma revista, a fim de verificar se não havia intrusos escondidos
nas instalações, aguardando a entrada deles para convertê-los em reféns.
Clarence Desmond estava efetuando uma busca pelos banheiros, depósito,
caixa-forte e área dos cofres particulares. Somente depois de estar
plenamente convencido de que se encontrava sozinho no interior do banco
é que levantaria a persiana, como um sinal de que estava tudo bem.
O contador senior sempre era o primeiro empregado a ser admitido.
Ele ocuparia o seu lugar ao lado do alarme de emergência, até que todos os
outros empregados entrassem, depois trancaria a porta.
Pontualmente Às oito e meia Tracy Whitney entrou no saguão ornado
com seus colegas de trabalho, tirou a capa, o chapéu e as botas, escutou
com um divertimento secreto os outros se queixarem do tempo chuvoso.
─ O maldito vento arrancou-me o guarda-chuva ─ lamentou um
caixa. ─ Estou encharcado.
─ Passei por dois patos nadando na Market Strect ─ comentou
jovialmente o chefe dos caixas.
─ A previsão do tempo é de que podemos esperar por mais uma
semana assim. Eu gostaria de estar na Flórida.
Tracy sorriu e começou a trabalhar. Era encarregada do
departamento de transferências por cabo. Até recentemente, transferência
de dinheiro de um banco para outro, de um país para outro, era um
processo lento e trabalhoso, exigindo o preenchimento de muitos
formulários e dependendo dos serviços postais nacionais e internacionais.
Com o advento dos computadores, a situação mudara drasticamente.
Quantias enormes podiam ser transferidas instantaneamente. A função de
Tracy era extrair do computador as transferências, processadas durante a
noite e, processar as transferências por computador para outros bancos.
Todas as transações eram em CÓDIGO, mudado regularmente para
impedir o acesso não-autorizado. A cada dia, milhões de dólares
electrónicos passavam pelas mãos de Tracy. Era um trabalho fascinante, o
sangue vital que alimentava as artérias dos negócios por todo o globo. Até
que Charles Stanhope III entrara em sua vida, a atividade bancária era a
coisa mais emocionante do mundo para Tracy. O Philadelphia Trust and
Fidelity Bank tinha uma grande divisão internacional e durante o almoço
Tracy e os colegas discutiam tudo o que acontecera pela manhã. Era uma
conversa inebriante.
Deborah, uma contadora, anunciou:
─ Acabamos de fechar o empréstimo associado de cem milhões de
dólares para a Turquia.
Mae Trenton, secretária do vice-presidente do banco, disse:
─ Foi decidido na reunião de diretoria desta manhã a participação na
nova linha de crédito para o Peru. A taxa inicial é acima de cinco milhões
de dólares...
Jon Creighton, o fanático do banco, acrescentou:
─ Soube que vamos entrar no pacote de socorro ao México com
cinquenta milhões. Eles não merecem um único centavo...
─ Isso é muito interessante ─ comentou Tracy. ─ Os países que
atacam a América por ser muito obcecada por dinheiro são sempre os
primeiros a nos suplicarem empréstimos.
Fora o assunto pelo qual ela e Charles haviam travado a sua primeira
discussão.
Tracy conhecera Charles Stanhope III num simpósio financeiro.
Charles era o orador convidado. Ele dirigia a empresa de investimentos
fundada por seu bisavô e fazia muitas operações com o banco para o qual
Tracy trabalhava. Depois da conferência de Charles, Tracy se aproximara
para discordar de sua análise da capacidade das nações do Terceiro Mundo
de pagarem as quantias assombrosas que haviam tomado emprestado dos
bancos do mundo inteiro e dos governos ocidentais. Charles a princípio se
mostrara divertido e depois atraído pelos argumentos veementes da linda
moça à sua frente. A discussão se prolongara pelo jantar no velho
restaurante Bookbinder's.
No começo, Tracy não se impressionara com Charles Stanhope III,
mesmo sabendo que ele era considerado o grande premio de Filadélfia.
Charles tinha 35 anos, era rico e vitorioso, pertencia a uma das famílias
mais tradicionais de Filadélfia. Com 1,78 metros de altura, cabelos cor de
areia ficando ralos, olhos castanhos e uma atitude confiante, até mesmo
um pouco pedante, ele era um dos ricos maçantes, na opinião de Tracy.
Como se lesse os seus pensamentos, Charles se inclinara sobre a
mesa e dissera:
─ Meu pai está convencido de que lhe deram o bebé errado no
hospital.
─ Como?
─ Sou um retrocesso. Acontece que não penso que o dinheiro é o fim
de tudo e a coisa mais importante na vida. Mas, por favor, jamais conte a
meu pai que eu lhe disse isso.
Havia nele uma despretensão tão encantadora que Tracy se
descobrira a apreciá-lo. Imagino como seria estar casada com alguém
assim... um homem da alta sociedade.
O pai de Tracy levara a maior parte de sua vida para construir um
negócio que os Stanhopes desdenhariam como insignificante. Os Stanhopes
e os Whitneys jamais se misturariam, pensara ela. Óleo e água. E os
Stanhopes são o óleo. E por que estou reagindo como uma idiota? É ego
demais. Um homem me convida para jantar e já estou decidindo se quero ou
não casar com ele. Provavelmente nunca mais tornaremos a nos encontrar...
Charles estava dizendo nesse instante:
─ Por acaso está livre para jantarmos de novo amanhã? Filadélfia era
uma cornucópia espetacular de coisas para ver e fazer. Nas noites de
sábado, Tracy e Charles iam ao balé ou assistiam Riccardo Muti conduzir a
Sinfónica de Filadélfia. Durante a semana, exploravam New Market e o
singular amontoado de lojas de Society Hill, vagueavam pelo Museu de Arte
de Filadélfia e o Museu Rodin.
Tracy parara um dia diante da estátua de O Pensador. Olhara para
Charles e sorrira.
─ É você!
Charles não se interessava por exercício, mas Tracy adorava. Assim,
nas manhãs de domingo, ela corria pelo West River Drive ou pelo passeio
que acompanhava o Rio Schuylkifl. Na tarde de sábado frequentava uma
aula de t'ai chi ch'uan. Depois de uma hora de exercício, exausta mas
exultante, ia se encontrar com Charles, no apartamento dele. Ele era um
cozinheiro gourmet e gostava de preparar pratos esotéricos como bistilla
marroquina, guo bu li, os bolinhos de massa e carne do norte da China, e
tahine de poulet au citron.
Charles era a pessoa mais meticulosa que Tracy já conhecera. Ela
chegara um dia atrasada 15 minutos para o jantar e o desprazer de
Charles lhe estragara o resto da noite. Depois disso, ela jurara que seria
sempre pontual com ele.
Tracy tinha muito pouca experiência sexual, mas parecera-lhe que
Charles fazia amor da mesma maneira como levava a sua vida;
meticulosamente, sempre da maneira conveniente. Houvera uma ocasião
em que Tracy decidira ser ousada e anticonvencional na cama. Deixara
Charles tão chocado que secretamente se perguntou, se ela não seria
alguma espécie de maníaca sexual.
A gravidez fora inesperada; quando acontecera, Tracy se descobrira
dominada pela incerteza. Charles não levantara a questão do casamento e
ela não queria que ele se sentisse na obrigação de casar por causa do bebê.
Não tinha certeza se poderia enfrentar um aborto, mas a alternativa era
uma opção igualmente angustiosa. Poderia criar uma criança sem a ajuda
do pai? Isso seria justo com a criança?
Uma noite, depois do jantar, Tracy resolvera dar a notícia a Charles.
Preparara um cassoulet para ele, em seu próprio apartamento, acabara
deixando-o queimar, de tanto nervosismo.
Ao pôr a carne chamuscada na mesa, ela esquecera o discurso
cuidadosamente ensaiado e balbuciara desordenadamente:
─ Sinto muito, Charles. Eu... estou grávida.
Houvera um silêncio insuportavelmente prolongado. Quando Tracy já
estava prestes a rompê-lo, Charles dissera:
─ Vamos casar, é claro.
Tracy experimentara uma sensação de enorme alívio.
─ Não quero que você pense que eu... Não precisa casar comigo por
causa disso.
Ele levantara a mão para impedi-la de continuar.
─ Quero casar com você, Tracy. Tenho certeza que dará uma esposa
maravilhosa. ─ E um instante depois ele acrescentara, falando bem
devagar: ─ É claro que meu pai e minha mãe ficarão um tanto surpresos.
Charles sorrira e a beijara. Tracy indagara, suavemente:
─ Por que eles ficarão surpresos?
Charles suspirara.
─ Querida, creio que você não compreende em que está se metendo.
Os Stanhopes sempre casam... e saiba que estou usando aspas... "com sua
própria espécie". Nas famílias tradicionais de Filadélfia.
─ E já lhe escolheram uma esposa ─ adivinhara Tracy.
Charles a tomara nos braços.
─ Isso não tem a menor importância. O que conta é quem eu escolhi.
Jantaremos com mamãe e papai na próxima sexta-feira. Já é tempo de
você conhecê-los.
Quando faltavam cinco minutos para as nove horas, Tracy percebeu
uma diferença no nível de ruido no banco. Os empregados passavam a
falar um pouco mais depressa, a se movimentarem um pouco mais
rapidamente. As portas do banco seriam abertas dentro de cinco minutos e
tudo tinha de estar pronto. Pela janela da frente, Tracy podia divisar os
clientes em fila na calçada lá fora, esperando sob a chuva fria.
Tracy observou enquanto o guarda do banco terminava de distribuir
fichas de depósito e retirada pelas bandejas de metal nas seis mesas no
corredor central. Os clientes regulares recebem fichas de depósito com um
CÓDIGO magnetizado pessoal no fundo; assim, a cada vez que se efetuava
um depósito, o computador creditava-o automaticamente na conta
apropriada. Mas, frequentemente, os clientes apareciam sem suas fichas de
depósito e preenchiam as comuns.
O guarda levantou os olhos para o relógio na parede. Enquanto o
ponteiro das horas se aproximava do nove, ele encaminhou-se para a porta
e cerimoniosamente destrancou-a.
O dia bancário começara.
Durante as horas subsequentes, Tracy se manteve ocupada demais
no computador para pensar em qualquer outra coisa. Cada transferência
tinha de ser conferida, a fim de certificar-se de que exibia o CÓDIGO
correto. Quando havia um débito, ela registrava o número da conta, a
quantia e o banco para o qual o dinheiro estava sendo transferido. Cada
banco possuía o seu próprio número de CÓDIGO; havia um catálogo
confidencial que continha os CÓDIGOs de todos os principais bancos do
mundo.
A manhã passou voando. Tracy planejava aproveitar a hora do
almoço para arrumar o cabelo e tinha uma hora marcada com Larry Stefla
Botte. Ele cobrava caro, mas valia a pena, pois ela queria que os pais de
Charles a conhecessem em sua melhor aparência. Tenho de fazer com que
eles gostem de mim. Não me importo com quem escolheram para Charles,
pensou Tracy. Ninguém pode fazer Charles tão feliz quanto eu farei.
À uma hora da tarde, quando Tracy pegava sua capa, Clarence
Desmond convocou-a para seu gabinete. Desmond era a própria imagem de
um executivo importante. Se o banco fizesse comerciais de televisão, ele
seria o porta-voz perfeito. Vestia-se conservadoramente, com um ar de
autoridade sólida e antiquada, parecia uma pessoa em quem se podia
confiar.
─ Sente-se, Tracy. ─ Ele se orgulhava de conhecer o primeiro nome
de cada empregado. ─ Um tempo horrível, não é, mesmo?
─ É, sim.
─ Mas as pessoas ainda precisam cuidar dos seus problemas
bancários. ─ Desmond esgotara todo o seu estoque de conversa amena.
Inclinou-se agora sobre a mesa e acrescentou: ─ Soube que você e Charles
Stanhope estão noivos.
Tracy ficou surpresa.
─ Ainda não anunciamos. Como...
Desmond sorriu.
─ Qualquer coisa que os Stanhopes fazem é notícia. Estou muito feliz
por você. Presumo que voltará a trabalhar conosco. Depois da lua-de-mel, é
claro. Não gostariamos de perdê-la. Você é uma das nossas funcionárias
mais valiosas.
─ Charles e eu conversamos a esse respeito e concordamos que eu
seria mais feliz se continuasse a trabalhar aqui.
Desmond sorriu, satisfeito. Stanhope & Sons era uma das casas de
investimentos mais importantes na comunidade financeira e seria
maravilhoso se obtivesse a sua conta exclusiva para a sucursal que dirigia.
Ele recostou-se na cadeira.
─ Quando voltar da lua-de-mel, Tracy, haverá uma boa promoção à
sua espera, assim como um aumento substancial.
─ Puxa, obrigada Isso é sensacional!
Ela sabia que merecia e experimentou um sentimento de orgulho.
Ficou ansiosa em contar a Charles. Parecia a Tracy que os deuses
conspiravam para fazer tudo o que podiam para inundá-la de felicidade.
Os pais de Charles Stanhope III viviam numa mansão antiga e
imponente, na Rittenhouse Square. Era um marco na cidade pelo qual
Tracy passara muitas vezes. E agora, pensou ela, vai se tornar uma parte
da minha vida.
Ela estava nervosa. Seu lindo penteado sucumbira à umidade no ar.
Trocara de vestido quatro vezes. Deveria se apresentar com simplicidade?
Formalmente? Tinha um Yves Saint-Laurent que economizara para
comprar na Wanamaker's. Se eu o usar, eles pensarão que sou uma
esbanjadora. Por outro lado, se puser algum dos meus vestidos de
liquidação da Pôst Horn, elas pensarão que o filho está casando com alguém
abaixo de sua classe. Ora essa, eles pensarão assim de qualquer maneira,
concluiu Tracy. Ela escolheu finalmente uma saia de lã cinza bem simples
e uma blusa branca de seda, pondo no pescoço a corrente fina de ouro que
a mãe lhe mandara de presente de Natal.
A porta da mansão foi aberta por um mordomo de libré.
─ Boa noite, Senhorita Whitney ─ O mordomo conhece meu nome,
pensou Tracy. Isso é um bom sinal? Um mau sinal?
─ Posso ajudá-la a tirar o casaco?
Ela estava pingando água no lindo tapete persa. O mordomo
conduziu-a por um vestibulo de mármore que parecia duas vezes maior do
que todo o banco. Tracy pensou, em pânico: Oh, Deus, estou vestida
completamente errada! Deveria ter usado o Yves Laurent. Ao entrar na
biblioteca, ela sentiu um fio correr no tornozelo da meia-calça, mas estava
frente a frente com os pais de Charles.
Charles Stanhope, pai, era um homem de aparência austera, com
sessenta e poucos anos. Parecia de fato um homem bem-sucedido; era uma
projeção do que Charles seria dentro de 30 anos. Tinha olhos castanhos,
como os de Charles, queixo firme, uma orla de cabelos brancos. Tracy
gostou dele instantaneamente. Era o perfeito avô para seu filho.
A mãe de Charles tinha uma aparência impressiva. Era um tanto
baixa e corpulenta, mas apesar disso irradiava uma impressão sumtuosa.
Ela parece firme e digna de confiança, pensou Tracy. Dará uma avó
maravilhosa. A Sra. Stanhope estendeu a mão.
─ Minha cara, foi muita gentileza sua vir nos visitar. Pedimos a
Charles que nos concedesse uns poucos minutos a sós com você. Não se
importa?
─ Claro que ela não se importa ─ declarou o pai de Charles. ─ Sentese...
Tracy, não é mesmo?
─ Isso mesmo, senhor.
Os dois sentaram-se num sofá, diante dela. Por que me sinto como se
estivesse prestes a sofrer um interrogatório? Tracy podia ouvir a voz da mãe:
Meu bem, Deus jamais lhe impingirá qualquer coisa que não possa
manipular. Basta apenas que dê um passo de cada vez.
O primeiro passo de Tracy foi um sorriso que saiu completamente
errado, porque naquele instante podia sentir o fio corrido na meia-calça
subir para o joelho. Tentou escondê-lo com as mãos.
─ Pois muito bem! ─ A voz do Sr. Stanhope era vigorosa. ─ Você e
Charles querem casar.
A palavra querem perturbou Tracy. Certamente Charles lhes dissera
que iam casar.
─ Isso mesmo ─ murmurou Tracy.
─ Você e Charles não se conhecem há muito tempo, não é? ─
perguntou a Sra. Stanhope.
Tracy fez um esforço para reprimir o ressentimento. Eu estava certa.
Será um interrogatório.
─ Tempo suficiente para saber que nos amamos, Sra. Stanhope.
─ Amor? ─ disse o Sr. Stanhope.
A Sra. Stanhope interveio:
─ Para ser franca, Senhorita Whitney, a notícia de Charles foi um
choque para seu pai e para mim. ─ Ela sorriu indulgentemente. ─ Charles
lhe falou sobre Charlotte, não é mesmo?
Ela percebeu a expressão no rosto de Tracy e se apressou em
acrescentar:
─ Entendo... O fato é que ele e Charlotte cresceram juntos. Sempre
foram muito ligados e... francamente, todos esperavam que, anunciassem
seu noivado este ano.
Não havia necessidade de uma descrição de Charlotte. Tracy podia
perfeitamente imaginá-la. Morava na casa ao lado. Rica, do mesmo meio
social de Charles. Todas as melhores escolas. Adorava cavalos e ganhara
taças.
─ Fale-nos a esse respeito de sua família ─ sugeriu o Sr. Stanhope.
Por Deus, esta é uma cena do filme da madrugada na televisão,
pensou Tracy, irritada. Sou a personagem de Rita Hayworth, encontrandome
pela primeira vez com os pais de Cary Grant. Preciso de um drinque. Nos
filmes antigos, o mordomo, sempre aparece em socorro com uma bandeja de
drinques.
─ Onde nasceu, minha cara? ─ perguntou a Sra. Stanhope.
─ Na Louisiana. Meu pai era um mecânico.
Não havia necessidade de acrescentar isso, mas Tracy fora incapaz de
resistir. Que eles fossem para o inferno. Ela tinha o maior orgulho do pai.
─ Um mecânico?
─ Isso mesmo. Ele abriu uma pequena fábrica em Nova Orleans e
desenvolveu-a numa das grandes companhias em seu sector. Quando
papai morreu, há cinco anos, minha mãe assumiu o comando da empresa.
─ O que essa... hen... companhia produz?
─ Canos de descarga e outras peças de automóveis.
O Sr. e Sra. Stanhope trocaram um olhar e murmuraram em
uníssono:
─ Ahn...
O tom deles deixou Tracy tensa. Quanto tempo precisarei para amálos?,
perguntou a si mesma. Olhou para os dois rostos impassíveis à sua
frente e, para seu horror, começou a balbuciar meio contrafeita:
─ Tenho certeza de que gostarão muito de minha mãe. Ela é bonita,
inteligente, simpática. Uma mulher do Sul. Bem pequena, é claro, mais ou
menos de sua altura, Sra. Stanhope...
As palavras de Tracy ficaram pairando no ar, sufocadas pelo silêncio
opressivo. Ela soltou uma risadinha tola, que se desvaneceu sob o olhar
severo da Sra. Stanhope. Foi o Sr. Stanhope quem rompeu o silêncio,
dizendo sem qualquer expressão:
─ Charles nos disse que você está grávida.
Ah, como Tracy gostaria que ele não tivesse revelado isso! A atitude
dos seus pais era de franca desaprovação. Era como se o filho nada tivesse
a ver com o que acontecera. Eles a faziam sentir como se fosse um estigma.
Sei agora o que deveria ter usado, pensou Tracy. Uma letra escarlate.
─ Não compreendo como actualmente e...
A Sra. Stanhope não pôde continuar a falar porque nesse momento
Charles entrou na sala. Tracy nunca se sentira tão contente por ver
alguém, em toda a sua vida.
─ E então? ─ disse Charles, radiante. ─ Como estão se dando?
Tracy levantou-se e correu para os seus braços.
─ Muito bem, querido.
Ela se aconchegou a ele, pensando: Graças a Deus que Charle, não é
como os pais. Nunca poderia ser como eles. São pessoas de mentalidade
tacanha, esnobes e frias.
Houve uma tosse discreta por trás deles e o mordomo se adiantou
com uma bandeja de drinques. Tudo acabará bem, disse Tracy a si mesma.
Este filme terá um final feliz.
O jantar foi excelente, mas Tracy estava nervosa demais para comer.
Discutiram negócios bancários e política, a situação aflitiva do mundo,
uma conversa sempre impessoal e polida. Ninguém chegou a dizer em voz
alta: "Você preparou uma armadilha para levar nosso filho ao casamento."
Para ser justa, pensou Tracy, devo admitir que eles têm todo o direito de
estar preocupados com a mulher com quem o filho vai casar. Charles
possuirá a firma um dia e é importante que ele tenha a esposa certa. Tracy
prometeu a si mesma: E ele terá.
Gentilmente, Charles pegou-lhe a mão, que torcia o guardanapo por
baixo da mesa, sorriu e piscou-lhe um olho. O coração de Tracy se
reanimou.
─ Tracy e eu preferimos um casamento pequeno ─ disse Charles.
─ E depois...
─ Não diga bobagem ─ interrompeu-o a Sra. Stanhope. ─ Nossa
família não tem casamentos pequenos, Charles. Haverá dezenas de amigos
que desejarão vê-lo casar.
Ela fez uma pausa, olhando para Tracy, como a avaliar sua figura.
─ Talvez devêssemos providenciar para que os convites do casamento
sejam expedidos imediatamente. ─ Uma pausa e, com uma reflexão
posterior, ela acrescentou: ─ Isto é, se for aceitável para você.
─ Claro que é.
Haveria mesmo um casamento. Por que cheguei a duvidar disso? A
Sra. Stanhope disse:
─ Alguns dos convidados virão do exterior. Tomarei as providências
para que fiquem hospedados na casa.
O Sr. Stanhope indagou:
─ Já decidiram onde passarão a lua-de-mel?
Charles sorriu.
─ Essa é uma informação confidencial, papai.
Ele apertou a mão de Tracy, enquanto a Sra. Stanhope perguntava:
─ Qual o prazo da lua-de-mel que estão planejando?
─ Cerca de cinquenta anos ─ respondeu Charles.
Tracy adorou-o por isso. Depois do jantar, eles foram tomar
conhaque na biblioteca. Tracy correu os olhos pela sala antiga e adorável,
com painéis de carvalho, as prateleiras com livros encadernados em couro,
dois Corots, um pequeno Copley e uma Reynolds. Não faria a menor
diferença para ela se Charles não tivesse qualquer dinheiro, mas admitiu
para si mesma que seria uma vida bastante agradável.
Já passava da meia-noite quando Charles levou-a de volta a seu
pequeno apartamento, ao lado do Fairmont Park.
─ Espero que a noite não tenha sido muito difícil para você, Tracy.
Mamãe e papai podem ser Às vezes um pouco irredutíveis.
─ Oh, não... eles foram maravilhosos ─ mentiu Tracy.
Ela estava exausta da tensão da noite, mas mesmo assim indagou,
quando chegaram à porta de seu apartamento:
─ Não vai entrar, Charles?
Ela precisava aconchegar-se em seus braços. Tinha vontade de lhe
dizer: "Eu o amo, querido. E ninguém neste mundo jamais poderá nos
separar".
─ Esta noite não será possível ─ disse ele. ─ Terei uma manhã
sobrecarregada.
Tracy ocultou seu desapontamento.
─ Eu compreendo, querido.
─ Falarei com você amanhã.
Ele deu-lhe um beijo rápido e Tracy observo-o se afastar pelo
corredor.
O apartamento estava em chamas e o som insistente das sirenes dos
bombeiros romperam abruptamente o silêncio da noite. Tracy soergueu-se
abruptamente na cama, tonta de sono, farejando a fumaça no quarto Às
escuras. A campainha continuou e lentamente ela percebeu que era o
telefone. O relógio na mesinha-de-cabeceira informava que eram duas e
meia da madrugada. Seu primeiro pensamento de pânico foi que alguma
coisa acontecera com Charles. Ela pegou o telefone bruscamente.
─ Alô?
Uma voz de homem distante indagou:
─ Tracy Whitney?
Ela hesitou. Se era um telefonema obsceno...
─ Quem está falando?
─ Aqui é o Tenente Miller, do Departamento de Polícia de Nova
Orleans. Estou falando com Tracy Whitney?
─ Ela mesma.
O coração de Tracy começou a disparar.
─ Infelizmente, tenho uma má notícia a lhe dar.
A mão de Tracy apertou o telefone com toda a força.
─ É sobre sua mãe.
─ Ela... mamãe sofreu algum acidente?
─ Ela está morta, Senhorita Whitney.
─ Não!
Foi um grito. Era de fato um trote. Algum maluco tentando assustála
Não havia nada de errado com sua mãe. Ela estava viva. Eu a amo muito,
Tracy. Mas muito mesmo.
─ Detesto ter de lhe dar a notícia desse jeito, Senhorita Whitney.
Era real. Era um pesadelo, mas estava acontecendo. Ela não podia
falar. A mente e a língua ficaram paralisadas. A voz do tenente
acrescentou:
─ Alô? Está me ouvindo, Senhorita Whitney? Alô?
─ Pegarei o primeiro avião.
Tracy sentou na pequena cozinha do apartamento, pensando na mãe.
Era impossível que ela estivesse morta. Sempre fora uma mulher vibrante,
cheia de vida. Haviam desfrutado um relacionamento intimo, repleto de
amor. Desde que era garotinha que Tracy podia levar seus problemas à
mãe, falar sobre a escola e os garotos, posteriormente sobre os homens.
Quando o pai de Tracy morrera, haviam sido apresentadas muitas
propostas por pessoas que queriam comprar a empresa. Ofereceram a
Doris Whitney dinheiro suficiente para ela viver confortavelmente pelo resto
de sua vida. Mas a mãe se recusara obstinadamente a vender.
─ Seu pai fez esta empresa. Não posso agora jogar fora todo o
trabalho árduo.
E ela mantivera a empresa em plena prosperidade. Oh, mamãe. eu a
amo tanto!, pensou Tracy. Agora, você nunca conhecerá Charles, nunca verá
o seu neto. Ela se pôs a chorar.
Tracy fez um café e deixou esfriar, enquanto continuava sentada, no
escuro. Queria desesperadamente telefonar para Charles e contar-lhe o que
acontecera, tê-lo a seu lado. Olhou para o relógio da cozinha. Eram três e
meia da madrugada. Não o acordaria; ligaria para ele de Nova Orleans.
Especulou se aquilo afetaria os planos de casamento e no mesmo instante
sentiu-se culpada pelo pensamento. Como podia pensar em si mesma num
momento como aquele? O Tenente Miller dissera:
─ Quando chegar aqui, pegue um táxi e venha direto para a chefatura
da polícia.
Por quê a chefatura da policia? O que acontecera?
Parada no apinhado aeroporto de Nova Orleans, esperando por sua
mala, cercada por viajantes impacientes, a se empurrarem, Tracy sentia-se
sufocada. Tentou chegar mais perto do carrossel de bagagem, mas
ninguém lhe dava passagem. Estava ficando cada vez mais nervosa,
receando o que teria de enfrentar dali a pouco. Empenhava-se em dizer a si
mesma que tudo não passava de um equívoco, mas as palavras ressoavam
em sua cabeça: Infelizmente tenho uma má noticia a lhe dar.. Ela está
morta, Senhorita Whitney... Detesto ter de lhe dar a notícia assim...
Depois que finalmente pegou a mala, Tracy embarcou num táxi e
repetiu o endereço que o tenente lhe fornecera:
─ South Broad Street, sete-um-cinco, por favor.
O motorista sorriu-lhe pelo espelho retrovisor.
─ Uma encrenca, hem?
Nada de conversa. Não agora. A mente de Tracy estava dominada
demais pelo turbilhão. O táxi seguiu para leste, pela Lake Ponchartrain
Causeway. O motorista puxou conversa:
─ Veio aqui para a grande festa, moça?
Tracy não tinha a menor idéia do que ele estava falando, mas
pensou: Não. Vim aqui para a morte. Ela estava consciente do zumbido da
voz do motorista, mas não escutava as palavras. Sentada muito rigída,
alheia ao ambiente famíliar por que passava. Foi somente quando se
aproximaram do Bairro Francês que Tracy tornou─ se consciente do
crescente barulho. Era o som de uma multidão enlouquecida, amotinados
berrando alguma antiga litania frenética.
─ Só dá para trazê-la até aqui ─ informou o motorista.
Foi nesse instante que Tracy levantou os olhos e viu. Era uma visão
incrível. Havia centenas de milhares de pessoas gritando, usando
máscaras, fantasiadas de dragões e crocodilos, de deuses pagãos,
povoando as ruas e calçadas à frente, com uma cacofonia de som
desvairada. Era uma explosão insana de corpos, música e dança.
─ É melhor saltar antes que eles virem o meu táxi ─ advertiu o
motorista. ─ Esse maldito Mardi Gras...
Mas é claro! Era fevereiro, o momento em que toda a cidade celebrava
o início da Quaresma, fazendo o seu carnaval. Tracy saltou do táxi e parou
por um instante junto ao meio-fio, com a mala na mão. E no momento
seguinte foi envolvida pela multidão a grita e dançar. Era obsceno, um
sabá de feiticeiras, um milhão de Fúrias comemorando a morte de sua
mãe. A mala foi arrancada da mão de Tracy e desapareceu. Ela foi agarrada
e beijada por um homem gordo, com uma máscara de demónio. Um cervo
apertou-lhe os seios e um panda gigante agarrou-a por trás e levantou-a.
Tracy tentou se desvencilhar e fugir dali, mas era impossível. Estava
cercada, acuada, uma parte da celebração de canto e dança. Foi se
deslocando com a multidão frenética, as lágrimas escorrendo pelas faces.
Não havia escapatória. Encontrava-se à beira da histeria quando
finalmente conseguiu se livrar e fugir para uma rua mais sossegada. Ficou
parada por um longo tempo, encostada num lampião, respirando fundo,
lentamente recuperando o controle de si mesma. E, depois, encaminhou-se
para a chefatura de polícia.
O Tenente Miller era um homem de meia-idade, de expressão
mortificada, o rosto enrugado, parecendo genuinamente contrafeito no
papel que tinha de desempenhar.
─ Lamento não poder recebê-la no aeroporto, mas a cidade inteira
enlouqueceu ─ disse ele . ─ Examinamos as coisas de sua mãe e você foi a
única que pudemos encontrar para chamar.
─ Por favor, tenente, conte-me o que... o que aconteceu com minha
mãe.
─ Ela cometeu suicídio.
Tracy sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.
─ Mas... mas isso é impossível! Por que ela haveria de se matar? Ela
tinha tudo para viver!
A voz de Tracy era trémula.
─ Ela deixou um bilhete para você
O necrotério era frio, indiferente e aterrador. Tracy foi conduzida por
um corredor comprido e branco até uma sala grande, asséptica e vazia. E
subitamente compreendeu que a sala não se achava vazia. Estava povoada
pelos mortos. Pela sua morta.
Um atendente de jaleco branco aproximou-se de uma parede,
estendeu a mão para uma alça e puxou uma gaveta enorme.
─ Quer dar uma olhada?
Não! Não quero ver o corpo vazio e sem vida estendido nessa caixa.
Ela queria sair dali. Queria voltar algumas horas no tempo, quando o
alarme de incêndio soava. E que seja um incêndio de verdade, não o
telefone, não minha mãe morta. Tracy adiantou-se, lentamente, cada passo
um grito interior. E depois estava olhando para o corpo inanimado que a
gerara, alimentara, rira com ela e a amara. Ela inclinou-se e beijou o rosto
da mãe. O rosto estava frio e flexível.
─ Oh, mamãe! ─ sussurrou Tracy. ─ Por quê? Por que fez isso?
─ Temos de efetuar uma autópsia ─ disse o atendente. É a lei
estadual nos casos de suicídio.
O bilhete que Doris Whitney deixara não oferecia qualquer resposta:
“Minha querida Tracy:
Perdoe-me, por favor. Fracassei e não podia suportar ser um fardo
para você. Esta é a melhor solução. Eu a amo muito.
Mamãe”
O bilhete era tão inanimado e desprovido de sentido quanto o corpo
que se achava na gaveta.
Tracy tomou as providências para o enterro naquela tarde, depois
pegou um táxi para a casa da família. à distância, podia ouvir o rugido dos
foliões do Mardi Gras, como alguma celebração estranha e lúgubre
A residência dos Witneys era uma casa vitoriana no Garden District,
na área residencial conhecida como Uptown. Como a maioria das
residências de Nova Orleans, era construida em madeira e não tinha porão,
pois o lugar situava-se abaixo do nível do mar.
Tracy crescera naquela casa, que estava povoada por recordações
agradáveis e afetuosas. Ela não estivera em casa no ano anterior. Quando o
táxi diminuiu, a fim de parar diante do prédio ela ficou chocada com o
cartaz grande que avistou no gramado: À VENDA ─ COMPANHIA
IMOBILIÁRIA DE NOVA ORLEANS. Era impossível. Nunca venderei esta
casa, a mãe dissera muitas vezes. Fomos muito felizes aqui.
Dominada por um medo insólito e irracional, Tracy passou por uma
enorme magnólia, encaminhando-se para a porta da frente. Ganhara a
chave de casa quando estava na sétima série e a carregava desde então
como um talismã, uma lembrança do refúgio que sempre estaria ali, à sua
espera.
Ela abriu a porta e entrou. Parou prontamente, aturdida. Os
cômodos estavam inteiramente vazios, desprovidos de móveis. Todas as
peças antigas e bonitas haviam desaparecido. A casa era como uma casca
vazia, abandonada pelas pessoas que outrora a ocupavam. Tracy correu de
um cômodo para outro, com uma incredulidade crescente. Era como se
tivesse ocorrido um desastre repentino. Subiu apressadamente e parou na
porta do quarto que ocupara durante a maior parte de sua vida. O quarto a
fitava, frio e vazio. Oh, Deus, que pode ter acontecido? Tracy ouviu a
campainha da porta da frente e desceu a escada para atender, como se
estivesse em transe.
Otto Schmidt estava parado na porta. O capataz da Whitney
Automotive Parts Company era um homem idoso, o rosto todo enrugado,
um corpo muito magro, em que se destacava a barriga de cerveja. Uma
tonsura de cabelos brancos emoldurava o crânio.
─ Acabei de receber a notícia, Tracy ─ disse ele, com um forte
sotaque alemão ─ Eu... eu não sei como lhe dizer o quanto lamento.
Tracy segurou-lhe as mãos.
─ Oh, Otto, não sabe como estou feliz em vê-lo! Mas entre. ─ Ela
levou-o para a vazia sala de estar. ─ Lamento que não haja lugar para
sentar. Importa-se de se sentar no chão?
─ Claro que não.
Sentaram-se de frente um para o outro, os olhos aturdidos pela dor.
Otto Schmidt fora empregado da companhia por tanto tempo quanto Tracy
podia se lembrar. Ela sabia o quanto o pai dependia dele. Quando a mãe
herdara a companhia, Schmidt continuara para dirigi-la.
─ Não entendo o que está acontecendo, Otto. A polícia diz que mamãe
cometeu suicídio. Mas você sabe muito bem que não havia motivo para ela
se matar. ─ Um pensamento súbito ocorreu-lhe. ─ Ela não estava doente,
não é mesmo? Ela não tinha alguma doença terrível. . .
─ Não. Não foi isso.
Ele desviou os olhos, contrafeito, alguma coisa em suspense nas
suas palavras. Tracy disse, lentamente:
─ Você sabe o que foi.
Ele fitou-a com os olhos azuis remelentos.
─ Sua mãe não lhe contou o que vinha acontecendo ultimamente.
Não queria preocupá-la.
Tracy franziu o rosto.
─ Não queria me preocupar com o quê? Continue ... por favor.
As mãos calejadas de Otto Schmidt se abriram e fecharam.
─ Já ouviu falar de um homem chamado Joe Romano?
─ Joe Romano? Não. Por quê?
Otto Schmidt piscou os olhos.
─ Romano procurou sua mãe há seis meses e disse que queria
comprar a companhia. Ela respondeu que não estava interessada em
vender. Mas ele ofereceu dez vezes mais do que a companhia valia e ela não
pôde recusar. Ficou muito animada. Investiria todo o dinheiro em
aplicações seguras, que proporcionariam uma receita de que vocês duas
poderiam viver, confortavelmente, pelo resto de suas vidas. Tencionava
fazer-lhe uma surpresa. Fiquei muito satisfeito por ela. Há três anos que eu
estava querendo me aposentar, mas não podia deixar a Sra. Doris sozinha,
não é mesmo? Esse Romano... ─ Otto pronunciou a palavra com uma fúria
evidente. ─ Esse Romano deu a ela uma pequena entrada. O dinheiro
grande... o pagamento do saldo... deveria entrar no mês passado.
Tracy disse, impaciente:
─ Continue, Otto. O que aconteceu?
─ Assim que assumiu, Romano despediu todo mundo e trouxe o seu
próprio pessoal. E começou a depredar a companhia. Vendeu todos os bens
e encomendou uma porção de equipamentos, vendendo tudo, mas não
pagando. Os fornecedores não se preocuparam com o atraso no
pagamento, porque pensavam que ainda estavam tratando com sua mãe.
Quando finalmente começaram a pressionar sua mãe pelo pagamento, ela
procurou Romano e exigiu que ele explicasse o que estava acontecendo. Ele
disse que desistira da transação e estava lhe devolvendo a companhia. A
esta altura, porém, a companhia já não valia mais nada e ainda por cima
sua mãe devia meio milhão de dólares, que não tinha condições de pagar.
Isso quase me matou e à minha mulher, Tracy. Acompanhamos a luta de
sua mãe para salvar a companhia. Mas não havia jeito. Eles a forçaram à
falência. Tomaram-lhe tudo. ... a companhia, esta casa, até mesmo seu
carro.
─ Oh, Deus!
─ Há mais. O promotor distrital comunicou à sua mãe que ia pedir
um indiciamento por fraude, que ela se arriscava a uma sentença de
prisão. Acho que foi nesse dia em que ela realmente morreu.
Tracy fervilhava com uma onda de raiva impotente.
─ Mas tudo o que ela tinha de fazer era contar a verdade... explicar o
que aquele homem lhe fez.
O velho capataz sacudiu a cabeça.
─ Joe Romano trabalha para um homem chamado Anthony Orsatti.
E Orsatti manda em Nova Orleans. Descobri tarde demais que Romano já
tinha feito a mesma coisa com outras companhias. Mesmo que sua mãe o
levasse aos tribunais, muitos anos se passariam antes que tudo ficasse
esclarecido. E ela não tinha dinheiro para lutar contra ele.
─ Por que ela não me disse nada?
Era um brado de angústia, um brado pela angústia da mãe.
─ Sua mãe era uma mulher orgulhosa. E o que você podia fazer? Não
há nada que alguém possa fazer.
Você está enganado, pensou Tracy, furiosa.
─ Quero falar com Joe Romano. Onde posso encontrá-lo?
Schmidt disse, incisivamente:
─ Esqueça-o. Não faz idéia de como ele é poderoso.
─ Onde ele mora, Otto?
─ Ele tem uma casa perto de Jackson Square. Mas não adiantará ir
até lá, Tracy.
Tracy não respondeu. Estava dominada por uma emoção que lhe era
totalmente desconhecida: o ódio. Joe Romano pagará pela morte de minha
mãe, jurou Tracy para si mesma.



Amanhã capítulo 3.
Humberto Lopes
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