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Se Houver Amanhã - Capítulo 3

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Mensagem por Humberto Lopes Ter Out 02, 2012 7:01 am


Ela precisava de tempo. Tempo para pensar, tempo para planejar o
seu próximo movimento. Não suportava voltar para a casa despojada e por
isso foi hospedar-se num pequeno hotel na Magazine Street, longe do
Bairro Francês, onde o carnaval desvairado ainda continuava. Não tinha
bagagem e o desconfiado recepcionista disse:
─ Terá de pagar adiantado. São quarenta dólares pela noite.
Tracy telefonou do quarto para Charles Desmond, a fim de
comunicar-lhe que não poderia trabalhar por alguns dias. Ele disfarçou a
irritação pela inconveniência e disse a Tracy:
─ Não se preocupe. Arrumarei alguém para ficar no seu lugar até
voltar.
Desmond esperava que ela se lembrasse de contar a Charles
Stanhope como ele fora compreensivo e prestativo. O telefonema seguinte
de Tracy foi para Charles.
─ Charles, querido....
─ Onde diabo você está, Tracy? Mamãe tentou encontrá-la durante
toda a manhã. Ela queria almoçar hoje com você. As duas têm muitas
coisas para combinar.
─ Desculpe, querido. Estou em Nova Orleans.
─ Você está onde? O que foi fazer em Nova Orleans?
─ Minha mãe... morreu.
A palavra quase ficou presa na garganta de Tracy.
─ Oh... ─ O tom de voz de Charles mudou no mesmo instante. ─
Sinto muito, Tracy. Deve ter sido muito súbito. Ela não era bastante
jovem?
Ela era muito jovem, pensou Tracy, desesperada. Em voz alta, ela
disse:
─ Era, sim.
─ O que aconteceu? Você está bem?
Por algum motivo, Tracy não podia contar a Charles que fora
suicídio. Queria ansiosamente contar toda a história terrível do que haviam
feito com sua mãe, mas se conteve. O problema é meu, pensou ela. Não
posso descarregar meu fardo em Charles.
─ Não se preocupe, querido. Estou bem.
─ Quer que eu vá até aí, Tracy?
─ Não, obrigada. Posso cuidar de tudo. Enterrarei mamãe amanhã. E
estarei de volta a Filadélfia na segunda-feira.
Depois de desligar, ela estendeu─ se na cama do hotel, os
pensamentos à deriva. Pôs-se a contar as placas acústicas no teto. Um...
dois... três... Romano... quatro... cinco... Joe Romano... seis... sete... ele
pagaria. Ela não tinha qualquer plano. Sabia apenas que não permitiria
que Joe Romano escapasse impune ao que fizera, que encontraria algum
meio de fazê-lo pagar.
Tracy deixou o hotel ao final da tarde e seguiu a pé pela Canal
Strect, até encontrar uma loja de penhores. Um homem de aspecto
cansado, usando uma antiquada pala verde, estava sentado num guichê,
por trás do balcão.
─ O que deseja?
─ Eu... quero comprar um revólver
─ De que tipo?
─ Sabe como é... apenas um revólver...
─ Quer um 32, um 45, um...
Tracy nunca empunhara uma arma de fogo.
─ Um... um 32 servirá.
─ Tenho aqui um excelente Smith & Wesson calibre 32 por 229
dólares. Tenho também um Charter Arms 32 por 159...
Tracy não trouxera muito dinheiro na viagem.
─ Não tem alguma coisa mais barata?
Ele deu de ombros.
─ O mais barato é um bodoque, dona. Mas podemos fazer uma coisa.
Eu lhe venderei o 32 por 150 dólares e ofereço de brinde uma caixa de
balas.
─ Está bem.
Tracy observou enquanto o homem se deslocava para um arsenal
sobre uma mesa mais atrás e selecionava um revólver. Ele levou─ o para o
balcão.
─ Sabe como usá-lo?
─ Sei... basta puxar o gatilho.
O homem soltou um grunhido.
─ Quer que eu lhe ensine a carregar?
Ela já ia dizer que não precisava, que não tencionava usar o revólver,
que queria apenas assustar alguém. Mas compreendeu como isso pareceria
absurdo.
─ Quero, sim, por favor.
Tracy observou enquanto ele inseria as balas no tambor.
─ Obrigada.
Ela abriu a bolsa e contou o dinheiro.
─ Precisarei de seu nome e endereço para o registro policial.
Era uma coisa que não ocorrera a Tracy. Ameaçar Joe Romano com
um revólver era um ato criminoso. Mas ele é o criminoso e não eu. A pala
verde dava aos olhos do homem uma impressão lúgubre enquanto
observavam Tracy.
─ Nome?
─ Smith... Joan Smith.
Ele fez uma anotação num cartão.
─ Endereço?
─ Dowman Road... Dowman Road, 32.
Sem levantar os olhos, ele comentou:
─ Não existe Dowman Road, 32. Seria no meio do rio. Vamos passar
para 25.
Ele estendeu o recibo para Tracy. Ela assinou JOAN SMITH.
─ Isso é tudo?
─ É, sim.
Cuidadosamente, ele empurrou o revólver pelo guichê. Tracy fitou─ o
imóvel por um instante, depois pegou-o e guardou na bolsa, virou─ se e
deixou a loja apressadamente.
─ Ei, dona! ─ gritou o homem, enquanto ela se afastava. ─ Não
esqueça que a arma está carregada!
A Jackson Square fica no coração do Bairro Francês, com a bela
Catedral de St. Louis dominando-a como uma bênção. As casas antigas e
aprazíveis da praça ficam ao abrigo do tráfego intenso por sebes altas e
graciosas magnólias. Joe Romano vivia numa daquelas casas.
Tracy esperou até o anoitecer para partir. O carnaval deslocara─ se
para a Chartres Strect; à distância, ela podia ouvir o som do pandemónio
em que fora engolfada anteriormente.
Tracy parou nas sombras, observando a casa, consciente do peso do
revólver em sua bolsa. O plano que elaborara era simples. Tentaria
argumentar com Joe Romano, pediria que limpasse o nome da mãe. Se ele
recusasse, iria ameaçá-lo com o revólver, obrigá-lo a escrever uma
confissão. E a levaria para o Tenente Miller, que prenderia Romano,
resguardando assim o nome da mãe. Desejava desesperadamente que
Charles estivesse ali, a seu lado, mas sabia que era melhor cuidar de tudo
sozinha. Tinha de deixar Charles de fora daquilo. Contaria a ele depois que
tudo terminasse, com Joe Romano atrás das grades, que era o lugar a que
ele pertencia. Um pedestre se aproximava. Tracy esperou até que ele se
afastasse e a rua ficasse completamente deserta.
Ela subiu os degraus da casa e tocou a campainha. Ninguém
atendeu. Ele está provavelmente num dos bailes particulares oferecidos
durante o Mardi Gras. Mas posso esperar, pensou Tracy. Posso esperar até
que ele volte para casa. Subitamente, a luz da varanda foi acesa, a porta se
abriu e um homem apareceu. Sua aparência foi uma surpresa para Tracy.
Ela imaginara um gangster de aspecto sinistro, o mal estampado no rosto.
Em vez disso, deparava-se com um homem atraente e simpático, que
poderia facilmente ser tomado por um professor universitário. Sua voz era
baixa e amistosa:
─ Olá. Em que posso ajudá-la?
─ Você é Joseph Romano?
A voz de Tracy estava trémula.
─ O próprio. O que deseja?
Ele tinha um comportamento insinuante e agradável. Não é de
admirar que minha mãe se tenha deixado enganar por esse homem pensou
Tracy.
─ Eu... eu gostaria de lhe falar, Sr. Romano.
Ele contemplou-a por um momento, de alto a baixo.
─ Claro. Entre, por favor.
Tracy acompanhou-o a uma sala de estar cheia de móveis antigos,
bonitos e lustrosos. Joseph Romano vivia muito bem. À custa do dinheiro
de minha mãe, pensou Tracy, amargurada.
─ Eu ia me servir de um drinque. O que deseja tomar?
─ Nada.
Ele fitou-a com uma expressão curiosa.
─ Sobre o que deseja me falar, Senhorita ...
─ Tracy Whitney. Sou a filha de Doris Whitney.
Romano fitou-a impassível por um momento e depois uma expressão
de reconhecimento aflorou em seu rosto.
─ Ah, sim... Soube o que aconteceu com sua mãe. Uma coisa
lamentável.
Uma coisa lamentável! Ele causara a morte de sua mãe e esse era o
único comentário que tinha a fazer.
─ Sr. Romano, o promotor distrital acha que minha mãe foi culpada
de fraude. Mas sabe que isso não é verdade. E quero que me ajude a limpar
o nome dela.
Ele soltou uma risada.
─ Nunca falo de negócios durante o Mardi Gras. É contra a minha
religião. ─ Romano foi até o bar e começou a servir dois drinques. ─ Creio
que se sentirá melhor depois que tomar um drinque.
Ele não lhe deixava opção. Tracy abriu a bolsa e tirou o revólver.
Apontou para ele.
─ Eu lhe direi o que fará com que eu me sinta melhor, Sr. Romano:
obrigá-lo a confessar o que exatamente fez à minha mãe. ─ Joseph Romano
virou-se e viu a arma.
─ É melhor guardar isso, Senhorita Whitney. Pode disparar.
─ E vai mesmo disparar, se não fizer exatamente o que eu mandar.
Escreverá como saqueou a companhia, levando-a à falência e causando o
suicídio de minha mãe.
Ele a observava atentamente agora, uma expressão cautelosa nos
olhos escuros.
─ E se eu recusar?
─ Então eu vou matá-lo.
Tracy podia sentir o revólver tremendo em sua mão.
─ Não me parece uma assassina, Senhorita Whitney. ─ Ele se
aproximava dela agora, com um copo na mão. A voz era suave e sincera. ─
Nada tive a ver com a morte de sua mãe e pode estar certa de que eu...
Ele jogou o drinque no rosto de Tracy. Ela sentiu a ardência do
álcool em seus olhos e um instante depois a arma foi derrubada de sua
mão.
─ Sua velha me escondeu uma coisa ─ disse Joe Romano. ─ Ela não
me contou que tinha uma filha tão gostosa.
Ele a segurava, imobilizando-lhe os braços. Tracy não podia ver nada
e sentia-se apavorada. Tentou se desenvencilhar, mas ele a encostou numa
parede, comprimindo-se contra o seu corpo.
─ Tem coragem, boneca. Gosto disso. E me deixa com o maior tesão.
A voz dele soava rouca. Tracy podia sentir o seu corpo ardente contra
o dela. Tentava novamente se desenvencilhar, mas estava impotente em
seu aperto.
─ Veio aqui por um pouco de excitamento, hem? Pois é o Joe vai lhe
dar.
Ela tentou gritar, mas a voz saiu sufocada:
─ Largue-me!
Ele rasgou-lhe a blusa, sussurrando:
─ Ei, olhe só para esses peitos! ─ Ele começou a apertar-lhe os
mamilos. ─ Lute comigo, boneca. Gosto disso.
─ Largue-me!
Romano apertou-a com mais força ainda, machucando-a. Tracy
sentiu que estava sendo forçada para o chão.
─ Aposto que você nunca foi comida por um homem de verdade.
Ele se achava agora montado por cima dela, o corpo pesado a
comprimi-la, as mãos subindo por suas coxas. Tracy tateou Às cegas, os
dedos encontraram o revólver. Agarrou-o e houve uma explosão súbita,
estrondosa.
─ Oh, Deus! ─ exclamou Romano.
A pressão dele relaxou de repente. Através de uma névoa vermelha,
Tracy observou horrorizada, enquanto ele saia de cima dela, arriando no
chão, as mãos comprimindo o lado.
─ Você atirou em mim... sua puta... atirou em mim...
Tracy estava paralisada, incapaz de se mexer. Sentiu que ia vomitar,
os olhos se achavam cegos pela dor intensa. Conseguiu se levantar, virouse
e cambaleou para uma porta no outro lado da sala. Abriu-a. Era um
banheiro. Ela foi até a pia, encheu-a de água fria, molhou os olhos, até que
a dor começou a se desvanecer e a visão clareou. Contemplou-se no
espelho por cima da pia. Os olhos estavam injetados, com um aspecto
horrível. Santo Deus, acabei de matar um homem! Ela voltou correndo à
sala. Joe Romano estava caído no chão, o sangue se espalhando sobre o
tapete branco. Tracy parou ao lado, o rosto muito pálido.
─ Sinto muito ─ murmurou ela, atordoada. ─ Eu não tinha
intenção...
─ Ambulância...
A respiração de Romano era entrecortada. Tracy correu para o
telefone na mesa e discou para a telefonista. A voz saiu estrangulada
quando tentou falar:
─ Telefonista, providencie uma ambulância imediatamente. O
endereço é Jackson Square, 421. Um homem foi baleado.
Ela repôs o telefone no gancho e olhou para Joe Romano. Oh, Deus,
rezou ela, não deixe que ele morra, por favor. Sabe que eu não tencionava
matá-lo. Ela ajoelhou-se ao lado do corpo no chão, a fim de verificar se ele
ainda estava vivo. Os olhos se achavam fechados, mas Romano ainda
respirava.
─ Uma ambulância está a caminho ─ murmurou Tracy.
E ela fugiu.
Fez um esforço para não correr, com medo de atrair a atenção.
Fechou o casaco, a fim de esconder a blusa rasgada. A quatro quarteirões
da casa, tentou parar um táxi. Meia dúzia passaram direto em alta
velocidade, cheios de passageiros risonhos e felizes. à distância, Tracy
ouviu uma sirene se aproximando. Pouco depois, uma ambulância passou
por ela em disparada, seguindo na direção da casa de Joe Romano. Tenho
de sair daqui, pensou Tracy. Um táxi parou à sua frente e descarregou os
passageiros. Tracy correu, com medo de perdê-lo.
─ Está livre?
─ Depende. Para onde vai?
─ Para o aeroporto.
Ela prendeu a respiração.
─ Entre.
A caminho do aeroporto, Tracy pensou na ambulância. E se
chegassem tarde demais e encontrassem Joe Romano já morto? Ela seria
uma assassina. Deixara o revólver na casa, suas impressões digitais lá
estavam. Poderia dizer à polícia que Romano tentara estuprá-la e a arma
disparara acidentalmente.
Mas nunca acreditariam nela. Comprara a arma que estava no chão,
ao lado de Joe Romano. Quanto tempo passara? Meia hora? Uma hora?
Tinha de sair de Nova Orleans o mais depressa possível.
─ Gostou do carnaval? ─ perguntou o motorista.
Tracy engoliu em seco.
─ Ahn... gostei.
Ela tirou o espelhinho da bolsa e fez o que era possível para se
tornar apresentável. Fora estúpida ao tentar obrigar Joe Romano a
confessar. Tudo saira errado. Como posso dizer a Charles o que aconteceu?
Sabia como ele ficaria chocado; mas, depois que explicasse, ele
compreenderia. Charles saberia o que fazer.
Quando o táxi chegou ao Aeroporto Internacional de Nova Orleans,
Tracy pensou: Foi somente esta manhã que passei por aqui? Tudo aconteceu
num dia apenas? O suicídio da mãe... o horror de ser engolfada pelo
carnaval... o homem gritando... "Você atirou em mim... sua puta..."
Quando entrou no terminal, Tracy teve a impressão de que todos a
fitavam acusadoramente. É isso o que a consciência culpada faz, pensou
ela. Gostaria que houvesse algum meio de saber qual era o estado de Joe
Romano, mas não tinha a menor idéia do hospital para onde ele fora levado
ou para quem poderia telefonar. Ele vai ficar bom. Charles e eu voltaremos
a Nova Orleans para o enterro de mamãe e Joe Romano se salvará. Ela
tentou afastar da mente a visão do homem caído sobre o tapete branco, o
sangue manchando-o de vermelho. Tinha de voltar correndo para casa,
para Charles...
Tracy foi até o balcão da Delta Airlines.
─ Quero uma passagem de ida para Filadélfia no próximo voo, por
favor. Classe turista.
O funcionário consultou o computador.
─ Será o vôo três-zero-quatro. Está com sorte. Ainda resta um lugar.
─ A que horas o avião parte?
─ Dentro de vinte minutos. Está em cima da hora para embarcar.
Ao abrir a bolsa, Tracy sentiu mais do que viu dois guardas
uniformizados se postarem nos seus lados. Um deles disse:
─ Tracy Whitney?
O coração dela parou de bater por um instante. Seria estupidez
negar minha identidade.
─ Sou eu.
─ Está presa.
E Tracy sentiu o aço frio das algemas estalarem em seus pulsos.
Tudo estava acontecendo em câmara lenta com outra pessoa. Tracy
observou-se sendo levada pelo aeroporto, algemada a um dos guardas, as
pessoas se virando para olhar. Foi empurrada para o banco traseiro de
uma radiopatrulha preta e branca, com uma grade de aço a separá-la do
banco da frente. O carro partiu abruptamente, a luz vermelha piscando, a
sirene gemendo. Ela se encolheu no banco, tentando tornar-se invisível.
Era uma assassina. Joseph Romano morrera. Mas fora um acidente. Ela
explicaria como acontecera. Tinham de acreditar nela. Tinham de
acreditar... A delegacia de polícia para onde Tracy foi levada ficava no
distrito de Algiers, na zona oeste de Nova Orleans, um prédio sombrio e
agourento, com uma aparência de desolação. A sala da frente estava
apinhada de pessoas de aspecto deprimente... prostitutas, cafetões,
assaltantes e suas vitimas. Tracy foi conduzido à mesa do sargento de
plantão. Um dos guardas disse:
A mulher Whitney, sargento. Nós a pegamos no aeroporto, tentando
escapar.
─ Eu não estava...
─ Tirem as algemas.
As algemas foram removidas. Tracy recuperou a voz.
─ Foi um acidente. Eu não tinha a menor intenção de matá-lo. Ele
tentou me estuprar e...
─ Você é mesmo Tracy Whitney?
─ Sou, sim. Eu...
─ Levem-na para a cela.
─ Não! Espere um instante! ─ suplicou Tracy. ─ Preciso telefonar para
alguém. Eu... eu tenho o direito de dar um telefonema.
O sargento soltou um grunhido irónico.
─ Conhece a rotina, hem? Quantas vezes já esteve em cana, meu
bem?
─ Nenhuma. Esta é...
─ Pode dar um telefonema. Três minutos. Que número você quer?
Tracy estava tão nervosa que não conseguia lembrar o telefone de
Charles. Não conseguia sequer recordar o código de área para Filadélfia.
Seria dois-cinco-um? Não. O número era outro.
Ela agora tremia.
─ Vamos logo. Não posso ficar esperando a noite inteira.
Dois-um-cinco. Era isso!
─ Dois-um-cinco-cinco-cinco-cinco-nove-três-zero-um.
O sargento discou o número e entregou o telefone para Tracy.
Ela podia ouvir a campainha tocando. E tocando. Ninguém atendia.
Charles tinha de estar em casa. O sargento disse:
─ Seu tempo acabou.
Ele estendeu a mão para arrancar o telefone de Tracy.
─ Espere, por favor! ─ gritou ela.
Mas, subitamente, lembrou-se que Charles desligava seu telefone à
noite, a fim de não ser incomodado. Ela escutou a campainha por mais um
instante e compreendeu que não havia a menor possibilidade de entrar em
contato com Charles. O sargento indagou:
─ Já acabou?
Tracy fitou-o apaticamente e murmurou:
─ Já, sim.
Um guarda em mangas de camisa levou Tracy para uma sala, onde
ela foi fichada e lhe tiraram as impressões digitais. Depois, foi conduzida
por um corredor e trancada numa cela, sozinha.
─ Terá uma audiência pela manhã ─ informou o guarda afastando-se
e deixando-a sozinha.
Nada disso está acontecendo, pensou Tracy. Tudo não passa de um
terrível pesadelo. Oh, Deus, por favor, não permita que nada disso seja real!
Mas o catre fétido na cela era real, o vaso sanitário sem tampa no
canto era real, as barras eram reais.
As horas da noite se arrastaram interminavelmente. Se ao menos eu
conseguisse entrar em contato com Charles! Precisava dele agora mais do
que já precisara de qualquer outra pessoa, em toda a sua vida. Eu deveria
ter-lhe contado, em primeiro lugar. Se o fizesse, nada disso teria acontecido.
Às seis horas da manhã, um guarda entediado trouxe para Tracy um
café morno e um mingau de aveia frio. Ela não foi capaz de tocar. O
estômago se achava completamente contraído. Uma inspetora veio buscá-la
Às nove horas.
─ Está na hora, queridinha.
A mulher destrancou a porta da cela,
─ Preciso dar um telefonema ─ disse Tracy. ─ É muito..
─ Mais tarde. Não vai querer deixar o juiz esperando. Ele é um filho
da puta mesquinho.
Ela acompanhou Tracy por um corredor e através de uma porta que
dava para um tribunal. Um juiz idoso presidia o tribunal. A cabeça e as
mãos se mantinham em constante movimento, arrancos pequenos e
rápidos. À sua frente se encontrava o promotor distrital, Ed Topper, um
homem franzino, na casa dos 40 anos, cabelos grisalhos ondulados, olhos
pretos e frios. Tracy foi levada a uma cadeira e um momento depois o
meirinho anunciou:
─ O povo contra Tracy Whitney.
Tracy descobriu-se a avançar. O juiz examinava um papel à sua
frente, a cabeça balançando para cima e para baixo. Agora. Agora. Agora
era o momento de Tracy explicar a alguém com autoridade o que realmente
acontecera. Ela comprimiu as mãos, a fim de evitar que tremessem.
─ Meritissimo, não foi homicídio. Atirei nele, é verdade, mas foi um
acidente. Eu só pretendia assustá-lo. Ele tentou me violentar e...
O promotor distrital interrompeu-a:
─ Meritissimo, não vejo sentido em desperdiçar o tempo deste
tribunal. Esta mulher arrombou a casa do Sr. Romano, armada com um
revólver de calibre 32, roubou um quadro de Renoir no valor de meio
milhão de dólares. Quando o Sr. Romano surpreendeu-a em flagrante, ela
alvejou-o a sangue-frio e deixou-o como morto.
Tracy sentiu que o sangue se esvaía de seu rosto.
─ Mas... mas do que está falando?
Nada daquilo fazia qualquer sentido. O promotor acrescentou
bruscamente:
─ Temos a arma com que o Sr. Romano foi ferido. As impressões
digitais da mulher estão na arma.
Ferido! Então Joseph Romano estava vivo! Ela não matara ninguém.
─ Ela fugiu com o quadro, Meritissimo. Provavelmente se encontra
nas mãos de algum receptador, a esta altura. Por esse motivo, o Estado
solicita que Tracy Whitney seja julgada por tentativa de homicídio e assalto
à mão armada, com a fiança fixada em meio milhão de dólares.
O juiz virou-se para Tracy, que se encontrava imóvel, em estado de
choque.
─ Está representada neste tribunal?
Ela não ouviu. O juiz alteou a voz:
─ Tem um advogado?
Tracy sacudiu a cabeça.
─ Não. Eu... o que... o que esse homem disse não é verdade. Eu
nunca...
─ Tem dinheiro para contratar um advogado?
Havia o fundo dos empregados no banco. E havia Charles.
─ Eu... não, Meritissimo. Mas não compreendo...
─ O tribunal designará um advogado para você. Será mantida sob
custódia, com uma fiança de quinhentos mil dólares. Próximo caso.
─ Espere! Isso tudo é um equívoco! Eu não...
Ela não se lembrou depois de ter sido retirada do tribunal. O nome do
advogado designado pelo tribunal era Perry Pope. Ele se aproximava dos 40
anos, possuía um rosto rude e inteligente, olhos azuis simpáticos. Tracy
gostou dele imediatamente. Ele entrou na cela, sentou-se no catre e disse:
─ Você criou uma sensação e tanto para uma mulher que se encontra
na cidade há apenas 24 horas. ─ Ele sorriu. ─ Mas tem sorte. É uma
péssima atiradora. O ferimento foi superficial. Romano sobreviverá.
Ele tirou um cachimbo do bolso e acrescentou:
─ Importa-se que eu fume?
─ Não.
Ele encheu o cachimbo de fumo, acendeu-o, estudou atentamente o
rosto de Tracy.
─ Não parece a criminosa comum desesperada, Senhorita Whitney.
─ E não sou. Juro que não sou.
─ Pois então me convença. Conte o que aconteceu. Desde o início.
Leve o tempo que julgar necessário.
E Tracy contou. Tudo. Perry Pope escutou a história em silêncio, não
falando até que Tracy terminou. Recostou-se então na parede da cela, uma
expressão sombria no rosto. E disse, baixinho:
─ Aquele filho da puta...
─ Não entendo do que eles estavam falando. ─ Havia confusão nos
olhos de Tracy. ─ Não sei de nada sobre um quadro.
─ É realmente muito simples. Joe Romano usou-a como bode
expiatório, da mesma forma como fez com sua mãe. Você caiu direitinha
numa armadilha.
─ Ainda não compreendo.
─ Pois então vou explicar. Romano reclamará o seguro de meio
milhão de dólares pelo quadro de Renoir que escondeu em algum lugar e
receberá. A seguradora ficará atrás de você e não dele. Quando as coisas
esfriarem, Romano venderá o quadro a algum coleccionador particular e
ganhará mais meio milhão de dólares, graças à sua ingenuidade. Não sabia
que uma confissão obtida sob a mira de uma arma não tem valor?
─ Eu... eu acho que sabia. Pensei apenas que, se conseguisse lhe
arrancar a verdade, alguém poderia iniciar uma investigação.
O cachimbo se apagara. Ele tornou a acendê-lo.
─ Como entrou na casa?
─ Toquei à campainha da frente e o Sr. Romano abriu a porta.
─ Não é a história que ele conta. Há uma janela arrombada nos
fundos da casa e Romano garante que foi por lá que você entrou. Ele disse
à polícia que a surpreendeu a pegar o Renoir; quando tentou impedi-la,
você atirou nele e fugiu.
─ Mas isso é uma mentira! Eu...
─ Mas é a mentira dele, assim como a sua casa... enquanto a arma
pertence a você. Tem alguma idéia das pessoas que está enfrentando?
Tracy sacudiu a cabeça, em silêncio.
─ Pois então lhe contarei os fatos da vida, Senhorita Whitney. Esta
cidade é controlada pela Família Orsatti. Nada acontece por aqui sem a
aprovação de Anthony Orsatti. Se quer uma permissão para construir um
prédio, pavimentar uma rua, explorar as muralhas, a lotaria dos números
ou os tóxicos, tem de falar com Orsatti. Joe Romano começou como um
pistoleiro dele. Agora, é o homem principal na organização de Orsatti.
Ele fez uma pausa, fitando-a com admiração, antes de acrescentar:
─ E você entrou na casa de Romano e apontou-lhe um revólver!
Tracy continuou sentada, atordoada e exausta. Finalmente
perguntou:
─ Acredita na minha história?
O advogado sorriu.
─ Você está absolutamente certa. É tanta estupidez que só pode ser
verdade.
─ Pode me ajudar?
Ele respondeu bem devagar:
─ Vou tentar. Eu daria qualquer coisa para pôr todos eles por trás
das grades. São os donos desta cidade e da maioria dos nossos juizes. Se
você for a julgamento, eles a enterrarão tão fundo que nunca mais tornará
a ver a luz do dia.
Tracy fitou-o, perplexa.
─ Se eu for a julgamento?
Pope levantou-se e começou a andar de um lado para outro da cela,
enquanto dizia:
─ Não quero levá-la à presença de um júri porque será o júri dele.
Pode estar certa disso. Há somente um juiz que Orsatti nunca foi capaz de
comprar. O nome dele é Henry Lawrence. Se eu puder dar um jeito para
que ele assuma o caso, tenho certeza de que arrumarei um acordo para
você. Não é rigorosamente ético, mas conversarei com ele particularmente.
Lawrence odeia Orsatti e Romano tanto quanto eu. Agora, tudo o que
temos de fazer é atrair o Juiz Lawrence.
Perry Pope providenciou um telefonema de Tracy para Charles Tracy
ouviu a voz famíliar da secretária de Charles:
─ Escritório do Sr. Stanhope.
─ Harriet, aqui é Tracy Whitney. Eu...
─ Oh, Senhorita Whitney, ele vem tentando lhe falar há bastante
tempo, mas não tínhamos o seu telefone. A Sra. Stanhope está ansiosa em
acertar todas as providências para o casamento. Se puder procure-a o mais
depressa possível...
─ Harriet, posso falar com o Sr. Stanhope, por favor?
─ Lamento muito, Senhorita Whitney, mas não será possível. Ele está
a caminho de Houston. para uma reunião. Se me der seu número tenho
certeza de que ele lhe telefonará assim que puder.
─ Eu...
Ela não podia deixar que Charles lhe telefonasse para cadeia. Não
antes de primeiro ter a oportunidade de lhe explicar tudo o que acontecera.
─ Eu... eu telefonarei de novo para o Sr. Stanhope.
Ela desligou. Amanhã, pensou Tracy, cansada. Explicarei tudo a
Charles amanhã.
Tracy foi transferida naquela tarde para uma cela maior. Foi-lhe
servido um jantar delicioso no Cyalatoire's e pouco depois chegaram flores
frescas com um bilhete. Ela abriu o envelope e tirou o cartão: ÂNIMO,
VAMOS DERROTAR OS MISERÁVEIS. PERRY POPE.
Ele veio visitar Tracy na manhã seguinte. Ela compreendeu que havia
boas notícias no instante em que viu o sorriso em seu rosto.
─ Estamos com sorte ─ declarou ele . ─ Acabei de conversar com o
Juiz Lawrence e com Topper, o promotor distrital. Toppe protestou
furiosamente, mas chegamos a um acordo.
─ Um acordo?
─ Eu contei a sua história ao Juiz Lawrence. Ele concordou em
aceitar um reconhecimento de culpa de sua parte.
Tracy ficou chocada.
─ Um reconhecimento de culpa? Mas eu não...
─ Preste atenção. Declarando-se culpada, você poupa ao Estado a
despesa de um julgamento. Persuadi o juiz que você não roubou o quadro.
Ele conhece Joe Romano e acreditou em mim.
─ Mas... se eu me declarar culpada, o que eles farão comigo?
─ O Juiz Lawrence a condenará a três meses de prisão, com...
─ Prisão!
─ Espere um instante. Ele suspenderá a sentença e você poderá
cumpri-la em liberdade condicional, fora do Estado.
─ Mas neste caso eu... eu terei uma ficha policial.
Perry Pope suspirou.
─ Se a levarem a julgamento por assalto à mão armada e tentativa de
homicídio, durante o ato, você pode ser condenada a dez anos.
Dez anos de cadeia! Perry Pope observava pacientemente e
acrescentou:
─ Só posso lhe oferecer o meu melhor conselho. Já é um milagre o
que eu consegui. Eles querem uma resposta agora. Você não precisa
aceitar o acordo. Pode arrumar outro advogado e...
─ Não.
Tracy sabia que aquele homem era honesto. Nas circunstâncias,
considerando o seu comportamento insano, ele fizera tudo o que era
possível por ela. Se ao menos pudesse falar com Charles... Mas eles
precisavam de uma resposta agora. Ela provavelmente tinha sorte de
escapar com uma sentença de três meses em suspensão.
─ Eu... eu aceitarei o acordo.
Tracy teve de fazer muita força para que as palavras saíssem. O
advogado assentiu.
─ Está sendo esperta.
Tracy não teve permissão de dar qualquer telefonema antes de voltar
ao tribunal. Ed Topper postou-se num lado dela e Perry Pope no outro.
Sentado no assento do juiz estava um homem de aparência distinta, na
casa dos 50 anos, o rosto liso, sem rugas, cabelos abundantes e
impecáveis. O Juiz Lawrence disse a Tracy:
─ O tribunal foi informado que a ré deseja mudar sua alegação de
inocente para culpada. Isso é correto?
─ É, sim, Meritissimo.
─ Todas as partes estão de acordo?
Perry Pope assentiu.
─ Estão, Meritissimo.
─ O Estado concorda, Meritissimo ─ acrescentou o promotor.
O Juiz Lawrence permaneceu em silêncio por um longo momento.
Depois, inclinou-se para a frente e fitou Tracy nos olhos.
─ Um dos motivos para que este nosso grande país se encontre em
situação tão lamentável é que as ruas fervilham de vermes que pensam que
podem escapar impunes de qualquer coisa. Pessoas que zombam da lei.
Alguns sistemas judiciais neste país tratam bem os criminosos. Pois não
agimos assim na Louisiana. Quando alguém, ao cometer um assalto, tenta
matar uma pessoa a sangue─ frio, achamos que a culpada deve ser punida
de maneira exemplar.
Tracy começou a experimentar as primeiras pontadas de pânico.
Virou o rosto para Perry Pope. Os olhos do advogado fixavam─ se no juiz.
─ A ré admitiu que tentou assassinar um dos cidadãos eminentes
desta comunidade... um homem notório por sua filantropia e boas ações. A
ré alvejou-o no ato de roubar um objeto de arte no valor de meio milhão de
dólares. ─ A voz do juiz tornou-se mais áspera. ─ Pois este tribunal vai
providenciar para que não possa desfrutar esse dinheiro... não durante os
próximos 15 anos. É que durante os próximos 15 anos você estará
encarcerada na Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres.
Tracy sentiu que algum gracejo horrível lhe haviam impingido. O juiz
era um ator selecionado para o papel, mas estava lendo as linhas erradas.
Não deveria dizer nenhuma daquelas coisas. Ela virou-se para explicar isso
a Perry Pope, mas ele desviou os olhos. Ele arrumava papéis em sua pasta
e pela primeira vez Tracy notou que suas unhas eram roídas até o sabugo.
O Juiz Lawrence se levantara e começava a recolher os seus papéis. Tracy
ficou parada ali, atordoada, incapaz de compreender o que estava-lhe
acontecendo. Um guarda aproximou-se e segurou-a pelo braço.
─ Vamos embora.
─ Não! ─ gritou Tracy. ─ Não, por favor!
Ela levantou os olhos para o juiz e acrescentou:
─ Houve um engano terrível, Meritissimo. Eu...
Enquanto sentia a mão do guarda lhe apertar o braço, Tracy
compreendeu que não houvera qualquer erro. Fora enganada. Eles iam
destrui-la.
Assim como haviam destruido sua mãe.
Humberto Lopes
Humberto Lopes
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