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As Crônicas de gelo e fogo - Livro um- A guerra dos tronos - Prólogo

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Mensagem por Humberto Lopes Dom Set 30, 2012 12:46 pm

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Tradução
Jorge Candeias
2010
LeYa

Prólogo

- Deveríamos regressar - insistiu Gared quando os bosques
começaram a escurecer ao redor do grupo. - Os selvagens
estão mortos.
- Os mortos o assustam? - perguntou Sor Waymar Royce com
não mais do que uma sugestão de sorriso no rosto.
Gared não mordeu a isca. Era um homem velho, com mais de
cinquenta anos, e vira os nobres chegar e partir.
- Um morto é um morto - respondeu. - Nada temos a tratar
com os mortos.
- Mas estão mortos? - perguntou Royce com suavidade. - Que
prova temos disso?
- Will os viu - disse Gared. - Se ele diz que estão mortos, é
prova suficiente para mim.
Will já sabia que o arrastariam para a disputa mais cedo ou
mais tarde. Desejou que tivesse sido mais tarde.
- Minha mãe disse-me que os mortos não cantam - contou
Will.
- Minha ama de leite disse a mesma coisa, Will - respondeu
Royce. - Nunca acredite em nada do que ouvir junto à mama
de uma mulher. Há coisas a aprender mesmo com os mortos -
sua voz gerou ecos, alta demais na penumbra da floresta.
- Temos perante nós uma longa cavalgada - salientou Gared. -
Oito dias, talvez nove. E a noite está para cair.
Sor Waymar Royce olhou o céu de relance, com desinteresse.
- Isso acontece todos os dias por esta hora. Você perde a
virilidade com o escuro, Gared?
Will via o aperto em torno da boca de Gared, a ira só a custo
reprimida nos olhos que espreitavam sob o espesso capuz
negro de seu manto. Ele passara quarenta anos na Patrulha
da Noite, em homem e em rapaz, e não estava acostumado a
ser desvalorizado. Mas era mais do que isso. Will conseguia
detectar no homem mais velho algo mais sob o orgulho ferido.
Era possível sentir-lhe o gosto: uma tensão nervosa que se
aproximava perigosamente do medo.
Will partilhava o desconforto do outro homem. Estava havia
quatro anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviado
para lá, todas as velhas histórias lhe tinham acorrido ao
cérebro, e suas entranhas se tinham feito em água. Era agora
um veterano de cem patrulhas, e a escura e infinita terra
selvagem a que os sulistas chamavam floresta assombrada já
não tinha terrores para si.
Até aquela noite. Algo era diferente então. Havia naquela
escuridão algo de cortante que lhe fazia eriçar os pelos da
nuca. Cavalgavam havia nove dias, para norte e noroeste, e
depois de novo para norte, cada vez para mais longe da
Muralha, seguindo sem desvios a trilha de um bando de
salteadores selvagens. Cada dia fora pior que o anterior.
Aquele tinha sido o pior de todos. Um vento frio soprava do
norte e fazia as árvores sussurrarem como coisas vivas.
Durante todo o dia
Will tivera uma sensação que era como se alguma coisa o
estivesse observando, algo frio e implacável que não gostava
dele. Gared também sentira. Will nada desejava com tanta
força como cavalgar a toda pressa de volta à segurança da
Muralha, mas este não era um sentimento que se pudesse
partilhar com um comandante.
Especialmente com um comandante como aquele.
Sor Waymar Royce era o filho mais novo de uma Casa antiga
com demasiados herdeiros. Era um jovem bem-apessoado de
dezoito anos, de olhos cinzentos, elegante e esbelto como uma
faca. Montando em seu enorme corcel de batalha negro, o
cavaleiro elevava-se bem acima de Will e Gared, montados
nos seus garranos de menores dimensões. Trajava botas
negras de couro, calças negras de lã, luvas negras de pele de
toupeira e uma cintilante cota de malha negra e flexível por
cima de várias camadas de lã negra e couro fervido. Sor
Waymar era um Irmão Juramentado da Patrulha da Noite
havia menos de meio ano, mas ninguém poderia dizer que não
se preparara para a sua vocação. Pelo menos no que dizia
respeito ao guarda-roupa.
O manto constituía a consumação da sua glória; zibelina,
espessa e negra, suave como pele. "Aposto que foi ele próprio
quem as matou todas, ah, pois aposto", dissera Gared na
caserna, entre os vapores do vinho, “torceu-lhes as cabecinhas
e arrancou-as, o nosso poderoso guerreiro". A gargalhada fora
partilhada por todos.
"É difícil aceitar ordens de um homem de quem nos rimos de
copo na mão", refletiu Will, sentado, tremendo, sobre o dorso
do garrano, Gared devia sentir o mesmo.
- Mormont nos disse para os encontrarmos, e encontramos -
disse Gared. - Estão mortos. Não voltarão a nos causar
problemas, Temos uma dura cavalgada à nossa frente. Não
gosto deste tempo. Se nevar, poderemos levar uma quinzena
para regressar, e a neve é o melhor que podemos esperar.
Alguma vez viu uma tempestade de gelo, senhor?
O nobre pareceu não ouvi-lo. Estudava o crepúsculo, o que
aprofundava aquele seu modo meio aborrecido e meio
distraído. Will já cavalgava com o cavaleiro havia tempo
suficiente para compreender que era melhor não o
interromper quando tinha aquela expressão.
- Diga-me de novo o que viu, Will. Todos os detalhes. Não
deixe nada de fora,
Will fora um caçador antes de se juntar à Patrulha da Noite.
Bem, na verdade fora um caçador furtivo. Os cavaleiros livres
de Mallister tinham-no apanhado com a boca na botija nos
bosques do próprio Mallister, esfolando um dos seus gamos, e
apenas pudera escolher entre passar a vestir-se de negro e
perder uma mão. Ninguém era capaz de se mover pela floresta
tão silenciosamente como Will, e os irmãos negros não tinham
demorado muito tempo para descobrir seu talento.
- O acampamento fica duas milhas mais à frente, para lá
daquela cumeada, ao lado de um córrego - disse Will. -
Cheguei o mais perto que me atrevi. Eles são oito, com
homens e mulheres. Não vi crianças. Ergueram um abrigo
contra a rocha. A neve já o cobriu bem, mas mesmo assim
consegui descortiná-lo. Não vi nenhum fogo ardendo, mas a
cova da fogueira ainda estava clara como o dia. Ninguém se
movia. Observei durante muito tempo. Nunca um homem
vivo ficou tão quieto.
- Viu algum sangue?
- Bem, não - admitiu Will.
- Viu armas?
- Algumas espadas, uns quantos arcos. Um homem tinha um
machado. Com ar de ser pesado, duas lâminas, um cruel
bocado de ferro. Estava no chão à seu lado, junto à sua mão.
- Prestou atenção à posição dos corpos?
Will encolheu os ombros.
- Um par deles está sentado junto ao rochedo. A maioria está
no chão. Como caídos.
- Ou dormindo - sugeriu Royce.
- Caídos - insistiu Will. - Há uma mulher numa árvore de pauferro,
meio escondida entre os ramos. Uma olhos-longos - ele
deu um tênue sorriso. - Assegurei-me de que não me
conseguiria ver. Quando me aproximei, vi que ela também
não se movia - e sacudiu-se por um estremecimento
involuntário.
- Está enregelado? - perguntou Royce.
- Um pouco - murmurou Will. - É o vento, senhor.
O jovem cavaleiro virou-se para seu grisalho homem de
armas. Folhas pesadas de geada suspiravam ao passar por
eles, e o corcel de batalha movia-se de forma inquieta.
- Que lhe parece que possa ter matado aqueles homens,
Gared? - perguntou Sor Waymar com ar casual, ajustando a
posição do longo manto de zibelina.
- Foi o frio - disse Gared com uma certeza férrea. - Vi homens
congelar no inverno passado e no outro antes desse, quando
eu era pequeno. Toda a gente fala de neve com doze metros de
profundidade, e do modo como o vento de gelo chega do norte
uivando, mas o verdadeiro inimigo é o frio. Aproxima-se em
silêncio, mais furtivo do que o Will. A princípio estremece-se e
os dentes batem, e bate-se com os pés no chão e sonha-se com
vinho aquecido e boas e quentes fogueiras. Ele queima, ah,
como queima. Nada queima como o frio. Mas só durante
algum tempo. Então, penetra no corpo e começa a enchê-lo, e
passado algum tempo já não se tem força suficiente para
combatê-lo. E mais fácil limitarmo-nos a nos sentar ou a
adormecer. Dizem que não se sente dor alguma perto do fim.
Primeiro, fica-se fraco e sonolento, e tudo começa a se desvanecer,
e depois é como afundar num mar de leite morno.
Como que pacífico.
- Quanta eloquência, Gared - observou Sor Waymar. - Nunca
suspeitei que a tivesse dentro de si.
- Também tive o frio dentro de mim, nobre - Gared puxou
para trás o capuz, oferecendo a Sor Waymar um longo olhar
sobre os cotos onde as orelhas tinham estado. - Duas orelhas,
três dedos dos pés e o mindinho da mão esquerda. Tive sorte.
Encontramos meu irmão congelado no seu posto de vigia com
um sorriso no rosto.
Sor Waymar encolheu os ombros.
- Deveria vestir coisas mais quentes, Gared.
Gared lançou ao nobre um olhar feroz, e as cicatrizes em redor
das suas orelhas ficaram vermelhas de fúria nos locais onde o
Meistre Aemon as cortara.
- Veremos quão quente poderá se vestir quando chegar o
inverno - puxou o capuz para cima e arqueou as costas sobre
o garrano, silencioso e carrancudo.
- Se Gared diz que foi o frio... - começou Will.
- Você fez alguma vigia nesta última semana, Will?
- Sim, senhor - nunca havia uma semana em que ele não
fizesse uma maldita dúzia de vigias. Aonde o homem queria
chegar?
- E em que estado encontrou a Muralha?
- Úmida - Will respondeu, franzindo a sobrancelha. Agora
que o nobre o fizera notar, via os fatos com clareza. - Eles não
podem ter congelado. Se a Muralha está úmida, não podem. O
frio não é suficiente.
Royce anuiu.
- Rapaz esperto. Tivemos alguns frios ligeiros na semana
passada, e uma queda de neve rápida de vez em quando, mas
com certeza não houve nenhum frio suficientemente forte
para matar oito homens adultos. Homens vestidos de peles e
couro, relembro, com um abrigo ali à mão e meios para fazer
fogo - o sorriso do cavaleiro ressumava confiança. - Will, levenos
lá. Quero ver esses mortos com meus próprios olhos.
E a partir desse momento nada mais havia a fazer. A ordem
fora dada, e a honra os obrigava a obedecer.
Will seguiu à frente, com o pequeno garrano felpudo
escolhendo com cuidado o caminho por entre a vegetação
rasteira. Uma neve ligeira caíra na noite anterior, e havia
pedras, raízes e covas escondidas por baixo da sua crosta, à
espreita dos descuidados e dos imprudentes. Sor Waymar
Royce vinha logo atrás, com o grande corcel negro de batalha
resfolegando de impaciência. Aquele cavalo era a montaria
errada para uma patrulha, mas tentem dizer isto ao nobre.
Gared fechava a retaguarda. O velho soldado resmungava
para si próprio enquanto avançava.
O crepúsculo aprofundava-se. O céu sem nuvens tomou um
profundo tom de púrpura, a cor de uma velha nódoa negra, e
depois se dissolveu em negro. As estrelas começaram a surgir.
Uma meia-lua se ergueu. Will estava grato pela luz.
- Podemos decerto avançar mais depressa do que isto - disse
Royce depois de a lua se erguer por completo.
- Com este cavalo, não - respondeu Will. O medo tornara-o
insolente. - Talvez meu senhor deseje tomar a dianteira?
Sor Waymar Royce não se dignou a responder. Em algum
lugar nos bosques um lobo uivou.
Will levou o garrano para baixo de uma velha e nodosa
árvore de pau-ferro e desmontou.
- Por que parou? - perguntou Sor Waymar.
- É melhor ir o resto do caminho a pé, senhor. O lugar é logo
depois daquela colina.
Royce fez uma pausa momentânea, de olhos presos na
distância e o rosto pensativo. Um vento frio sussurrou por
entre as árvores. O grande manto de zibelina agitou-se nas
costas como uma coisa semiviva.
- Há qualquer coisa de errado aqui - murmurou Gared.
O jovem cavaleiro dedicou-lhe um sorriso desdenhoso.
- Aí há?
- Não o sentiu? - perguntou Gared. - Escute a escuridão.
Will sentia. Em quatro anos na Patrulha da Noite, nunca
estivera tão temeroso. O que era aquilo?
- Vento. Ruído de árvores. Um lobo. Que som te apavora
tanto, Gared? - como Gared não respondeu, Royce deslizou
graciosamente da sela. Atou com segurança o corcel de
batalha a uma ramada baixa, bem afastado dos outros
cavalos, e retirou a espada da bainha. Jóias cintilaram no
punho e o luar percorreu o aço brilhante. Era uma arma
magnífica, forjada num castelo e, segundo aparentava,
novinha em folha. Will duvidava que tivesse sido alguma vez
brandida em fúria.
- O arvoredo é espesso por aqui - preveniu Will. - Essa espada
o atrapalhará, senhor. Uma faca é melhor.
- Se precisar de instruções, eu as pedirei - disse o jovem
senhor. - Gared, fique aqui. Guarde os cavalos.
Gared desmontou.
- Precisamos de uma fogueira. Tratarei disso.
- Quanta tolice tem nessa cabeça, velhote? Se houver inimigos
nesta floresta, uma fogueira é a última coisa que queremos.
- Há alguns inimigos que uma fogueira manterá afastados -
disse Gared. - Ursos, lobos gigantes e... e outras coisas...
A boca de Sor Waymar transformou-se numa linha dura.
- Não haverá fogo.
O capuz de Gared engolia-lhe o rosto, mas Will conseguia ver
a cintilação dura nos olhos que se fixavam no cavaleiro. Por
um momento, temeu que o homem mais velho puxasse a
espada. Era uma coisa curta e feia, com o punho desbotado
pelo suor e o gume denteado pelo muito uso, mas Will não
daria um pendão de ferro pela vida do nobre se Gared a
desembainhasse.
Por fim, Gared olhou para baixo.
- Não haverá fogo - murmurou de forma quase inaudível.
Royce tomou aquilo como aquiescência e virou-se.
- Indique o caminho - disse a Will.
Will teceu um rumo através de um matagal, depois subiu o
declive da colina baixa onde encontrara seu ponto de vigia,
por baixo de uma árvore sentinela. Sob a fina crosta de neve o
solo estava úmido e lamacento, escorregadio, com rochas e
raízes escondidas, prontas para provocar tropeços.
Will não fez nenhum som enquanto subia. Atrás de si ouvia o
suave roçar metálico da cota de malha do nobre, o restolhar
de folhas e pragas murmuradas quando ramos espetados se
agarravam à espada e puxavam o magnífico manto de
zibelina do outro homem.
A grande árvore estava mesmo no topo da colina onde Will
sabia que estaria, com os ramos inferiores não mais que trinta
centímetros acima do solo. Will deslizou por baixo, com a
barriga apoiada na neve e na lama, e olhou a clareira vazia
mais abaixo.
O coração parou no seu peito. Por um momento não se
atreveu a respirar. O luar brilhava sobre a clareira, sobre as
cinzas na cova da fogueira, sobre o abrigo coberto de neve,
sobre o grande rochedo, sobre o pequeno riacho meio
congelado. Tudo estava como estivera algumas horas antes.
Eles não estavam lá. Todos os corpos tinham desaparecido.
- Deuses! - ouviu alguém dizer atrás de si. Uma espada
golpeou um ramo quando Sor Waymar Royce atingiu o topo
da colina. Ficou em pé ao lado da árvore, de espada na mão,
com o manto a ondular nas costas, soprado pelo vento que se
levantava, nobremente delineado contra as estrelas para que
todos o vissem.
- Abaixem-se! - segredou Will com urgência. - Há algo de
errado.
Royce não se moveu. Olhou para a clareira vazia e deu risada.
- Parece que seus mortos levantaram acampamento, Will.
A voz de Will o abandonou. Procurou palavras que não
vieram. Não era possível. Seus olhos percorreram para a
frente e para trás o acampamento abandonado e pararam no
machado. Um enorme machado de batalha de duas lâminas,
ainda caído onde o vira pela última vez, intocado. Uma arma
valiosa...
- De pé, Will - ordenou Sor Waymar. - Não há ninguém aqui.
Não quero vê-lo escondido por baixo de um arbusto.
Relutante, Will obedeceu.
Sor Waymar olhou-o com aberta desaprovação:
- Não vou regressar a Castelo Negro com um fracasso na
minha primeira patrulha. Vamos encontrar aqueles homens -
olhou de relance em volta. - Suba na árvore. Seja rápido.
Procure uma fogueira.
Will virou-se, sem palavras. Não valia a pena argumentar. O
vento movia-se. Trespassava-o. Dirigiu-se para a árvore, uma
sentinela abobadada cinzenta esverdeada, e começou a subir.
Em breve tinha as mãos pegajosas de seiva e estava perdido
entre as agulhas. O medo enchia-lhe o estômago como uma
refeição que fosse incapaz de digerir. Murmurou uma prece
aos deuses sem nome da floresta e libertou o punhal da
bainha. Colocou-o entre os dentes para manter as mãos livres
para a escalada. O sabor do ferro frio na boca o confortou.
Embaixo, o nobre de repente gritou:
- Quem vem lá?
Will ouviu incerteza na chamada. Parou de escalar; escutou;
observou. Os bosques deram resposta: um restolhar de folhas,
o correr gelado do riacho, o pio distante de uma coruja das
neves.
Os Outros não faziam som algum.
Will viu movimento com o canto do olho. Sombras pálidas
que deslizavam pela floresta. Virou a cabeça, viu de relance
uma sombra branca na escuridão. Logo depois ela
desapareceu. Ramos agitaram-se gentilmente ao vento,
coçando-se uns aos outros com dedos de madeira. Will abriu a
boca para gritar um aviso, mas as palavras pareceram
congelar na garganta. Talvez estivesse errado. Talvez tivesse
sido apenas uma ave, um reflexo na neve, um truque
qualquer do luar. Afinal, o que vira?
- Will, onde está? - chamou Sor Waymar. - Vê alguma coisa? -
o homem descrevia um círculo lento, de súbito cauteloso, de
espada na mão. Deve tê-los pressentido, tal como Will os
pressentia. Nada havia para ver. - Responda! Por que está
tão frio?
E estava frio. Tremendo, Will agarrou-se com mais força ao
seu poleiro. Apertou o rosto com força contra o tronco da
árvore. Sentia a seiva doce e pegajosa na bochecha.
Uma sombra emergiu da escuridão da floresta. Parou na
frente de Royce. Era alta, descarnada e dura como ossos
velhos, com uma carne pálida como leite. Sua armadura
parecia mudar de cor quando se movia; aqui era tão branca
como neve recém-caída, ali, negra como uma sombra, por
todo o lado sarapintada com o profundo cinzento esverdeado
das árvores. Os padrões corriam como o luar na água a cada
passo que dava.
Will ouviu a exalação sair de Sor Waymar Royce num longo
silvo.
- Não avance mais - preveniu o nobre. A voz estava quebrada
como a de um rapaz. Atirou o longo manto de zibelina para
trás por sobre os ombros, a fim de libertar os braços para a
batalha, e pegou na espada com ambas as mãos. O vento
parara. Estava muito frio.
O Outro deslizou para a frente sobre pés silenciosos. Na mão
trazia uma espada que não era como nada que Will tivesse
visto. Nenhum metal humano tinha entrado na forja daquela
lâmina. Estava viva de luar, translúcida, um fragmento de
cristal tão fino que parecia quase desaparecer quando visto de
frente. Havia naquela coisa uma tênue cintilação azul, uma
luz fantasmagórica que brincava com os seus limites, e de
algum modo Will soube que era mais afiada do que qualquer
navalha.
Sor Waymar enfrentou o inimigo com bravura.
- Neste caso, dance comigo.
Ergueu a espada bem alto acima da cabeça, desafiador. As
mãos tremiam com o peso da arma, ou talvez devido ao frio.
Mas naquele momento, pensou Will, já não era um rapaz, e
sim um homem da Patrulha da Noite. O Outro parou. Will
viu seus olhos, azuis, mais profundos e mais azuis do que
quaisquer olhos humanos, de um azul que queimava como
gelo. Will fixou-se na espada que estremecia, erguida, e
observou o luar que corria, frio, ao longo do metal. Durante
um segundo, atreveu-se a ter esperança.
Emergiram em silêncio, das sombras, gêmeos do primeiro.
Três... quatro... cinco... Sor Waymar talvez tivesse sentido o
frio que vinha com eles, mas não chegou a vê-los, não chegou
a ouvi-los. Will tinha de chamá-lo. Era seu dever. E sua
morte, se o fizesse. Estremeceu, abraçou a árvore e manteve o
silêncio.
A espada clara veio pelo ar, tremendo.
Sor Waymar parou-a com o aço. Quando as lâminas se
encontraram, não se ouviu nenhum ressoar de metal com
metal, apenas um som agudo e fino, no limiar da audição,
como um animal a guinchar de dor. Royce deteve um
segundo golpe, e um terceiro, e depois recuou um passo. Outra
chuva de golpes, e recuou outra vez.
Atrás dele, para a direita, para a esquerda, em seu redor, os
observadores mantinham-se em pé, pacientes, sem rosto,
silenciosos, com os padrões mutáveis de suas delicadas
armaduras a torná-los quase invisíveis na floresta. Mas não
faziam um gesto para intervir.
Uma vez e outra, as espadas encontraram-se, até Will querer
tapar os ouvidos, protegendo-os do estranho e angustiado
lamento de seus choques. Sor Waymar já arquejava por causa
do esforço, e a respiração gerava nuvens ao luar. Sua lâmina
estava branca de gelo; a do Outro dançava com uma pálida
luz azul.
Então, a parada de Royce chegou um momento tarde demais.
A espada cristalina trespassou a cota de malha por baixo de
seu braço. O jovem senhor gritou de dor. Surgiu sangue por
entre os aros, correu ao frio, e as gotas pareciam vermelhas
como fogo onde tocavam a neve. Os dedos de Sor Waymar
esfregaram o flanco. Sua luva de pele de toupeira veio
empapada de vermelho.
O Outro disse qualquer coisa numa língua que Will não
conhecia; sua voz era como o quebrar do gelo num lago de
inverno, e as palavras, escarnecedoras.
Sor Waymar Royce encontrou sua fúria.
- Por Robert! - gritou, e atacou, rosnando, erguendo com
ambas as mãos a espada coberta de gelo e brandindo-a num
golpe lateral paralelo ao chão, carregado com todo seu peso. A
parada do Outro foi quase displicente.
Quando as lâminas se tocaram, o aço despedaçou-se.
Um grito ecoou pela noite da floresta, e a espada quebrou-se
numa centena de pedaços quebradiços, espalhando os
estilhaços como uma chuva de agulhas. Royce caiu de
joelhos, guinchando, e cobriu os olhos. Sangue jorrou-lhe por
entre os dedos.
Os observadores aproximaram-se uns dos outros, como que
em resposta a um sinal. Espadas ergueram-se e caíram, tudo
num silêncio mortal.
Era um assassinato frio. As lâminas pálidas atravessaram a
cota de malha como se fosse seda. Will fechou os olhos. Muito
abaixo, ouviu as vozes e os risos, aguçados como pingentes.
Quando reuniu coragem para voltar a olhar, um longo tempo
se passara, e a colina lá embaixo estava vazia.
Ficou na árvore, quase sem se atrever a respirar, enquanto a
lua foi rastejando lentamente pelo céu negro. Por fim, com os
músculos cheios de cãibras e os dedos dormentes de frio,
desceu.
O corpo de Royce jazia na neve de barriga para baixo, com
um braço aberto. O espesso manto de zibelina tinha sido
cortado numa dúzia de lugares. Jazendo assim morto, via-se
como era novo. Um rapaz.
Will encontrou o que restava da espada a alguns pés de
distância, com a extremidade estilhaçada e retorcida, como
uma árvore atingida por um relâmpago. Ajoelhou-se, olhou
em volta com cautela e a apanhou. A espada quebrada seria
sua prova. Gared saberia compreendê-la, e, se não soubesse,
então haveria o velho urso do Mormont ou o Meistre Aemon.
Estaria Gared ainda à espera com os cavalos? Tinha de se
apressar.
Will endireitou-se. Sor Waymar Royce erguia-se sobre ele.
Suas belas roupas eram farrapos, o rosto, uma ruína. Um
estilhaço da espada trespassara a pupila branca e cega do olho
esquerdo.
O olho direito estava aberto. A pupila queimava, azul. Via.
A espada quebrada caiu de dedos despidos de força. Will
fechou os olhos para rezar. Mãos longas e elegantes roçaram
na sua bochecha e depois se fecharam em volta de sua
garganta. Estavam enluvadas na mais fina pele de toupeira e
pegajosas de sangue, mas seu toque era frio como gelo.


Nota: Irei postar se possível diariamente partes do livro.
Humberto Lopes
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