Leitores & Escritores
Gostaria de reagir a esta mensagem? Crie uma conta em poucos cliques ou inicie sessão para continuar.

As Crônicas de gelo e fogo - Livro um- A guerra dos tronos - Catelyn (3)

Ir para baixo

As Crônicas de gelo e fogo - Livro um- A guerra dos tronos - Catelyn (3) Empty As Crônicas de gelo e fogo - Livro um- A guerra dos tronos - Catelyn (3)

Mensagem por Humberto Lopes Ter Out 02, 2012 7:05 am

Catelyn

Catelyn nunca gostara daquele bosque sagrado.
Nascera entre os Tully, em Correrrio, mais ao Sul, nas
margens do Ramo Vermelho do Tridente. O bosque sagrado
que lá havia era um jardim, luminoso e arejado, onde grandes
árvores de pau-brasil espalhavam sombras sarapintadas por
córregos que rumorejavam entre as margens, aves cantavam
em ninhos escondidos e o ar era perfumado pelo odor de
flores.
Os deuses de Winterfell mantinham um tipo diferente de
bosque. Era um lugar escuro e primordial, três acres de
floresta antiga, intocada ao longo de dez mil anos, enquanto o
castelo se levantava a toda sua volta. Cheirava a terra úmida
e a decomposição. Ali não crescia o pau-brasil. Aquele era um
bosque de obstinadas árvores sentinelas, revestidas de
agulhas cinza-esverdeadas, de poderosos carvalhos, de árvores
de pau-ferro tão velhas como o próprio reino. Ali, espessos
troncos negros enroscavam-se uns aos outros, enquanto ramos
retorcidos teciam um denso dossel elevado e raízes
deformadas batalhavam sob o solo. Aquele era um lugar de
profundo silêncio e sombras meditativas, e os deuses que ali
viviam não tinham nomes.
Mas ela sabia que naquela noite encontraria ali seu marido.
Sempre que ele tirava a vida de um homem, procurava depois
o sossego do bosque sagrado.
Catelyn fora ungida com os sete óleos e fora-lhe dado o nome
no arco-íris de luz que enchia o septo de Correrrio. Pertencia à
Fé, tal como o pai e o avô, e o pai deste antes dele. Seus
deuses possuíam nomes, e seus rostos eram-lhe tão familiares
como os de seus pais. O serviço religioso era um septão com
um turíbulo, o cheiro do incenso, um cristal de sete lados
animado com luz, vozes erguidas em canto. Os Tully
mantinham um bosque sagrado, como todas as grandes casas,
mas era apenas um lugar para passear, ler ou ficar deitado ao
sol. A prece pertencia ao septo.
Por ela, Ned tinha construído um pequeno septo onde podia
cantar às sete caras de deus, mas o sangue dos Primeiros
Homens ainda corria nas veias dos Stark, e seus deuses eram
os antigos, os deuses sem nome nem rosto da mata verde que
partilhavam com os filhos desaparecidos da floresta.
No centro do bosque, um antigo represeiro reinava pensativo
sobre uma pequena lagoa onde as águas eram negras e frias.
Ned chamava-lhe "a árvore-coração". A casca do represeiro
era branca como osso e suas folhas, vermelhas como um
milhar de mãos manchadas de sangue. Uma cara tinha sido
esculpida no tronco da grande árvore, de traços compridos e
melancólicos, com os olhos profundamente escavados,
vermelhos de seiva seca e estranhamente vigilantes. Aqueles
olhos eram velhos; mais velhos do que a própria Winterfell.
Se as lendas falavam a verdade, tinham visto Brandon, o
Construtor, assentar a primeira pedra; tinham visto as
muralhas de granito do castelo crescer à sua volta. Dizia-se
que os filhos da floresta tinham esculpido as caras nas árvores
durante os séculos de alvorada, antes da chegada dos
Primeiros Homens, vindos do mar estreito.
No sul, os últimos represeiros tinham sido derrubados ou
queimados havia mil anos, exceto na Ilha das Caras, onde os
homens verdes mantinham sua vigilância silenciosa e as
coisas eram diferentes. Aqui cada castelo possuía seu bosque
sagrado, e cada bosque sagrado tinha sua árvore--coração, e
cada árvore-coração, seu rosto.
Catelyn encontrou o marido sob o represeiro, sentado numa
pedra coberta de musgo. Tinha Gelo, a espada, pousada sobre
as coxas, e limpava-lhe a lâmina naquelas águas, negras como
a noite. Mil anos de húmus jaziam numa grossa camada no
solo do bosque sagrado, engolindo o som dos pés da mulher,
mas os olhos vermelhos do represeiro pareciam segui-la
enquanto se aproximava.
- Ned - ela chamou, com suavidade. Ele ergueu a cabeça para
olhá-la.
- Catelyn - disse. Sua voz era distante e formal. - Onde estão
as crianças? Ele sempre lhe perguntava aquilo.
- Na cozinha, discutindo nomes para as crias de lobo - ela
estendeu o manto sobre o chão da floresta e sentou-se junto à
lagoa, de costas voltadas para o represeiro. Podia sentir os
olhos a observá-la, mas fez o melhor que pôde para ignorá-los.
- Arya já está apaixonada, e Sansa, enfeitiçada e apiedada,
mas Rickon não está muito seguro.
- Tem medo? - Ned perguntou.
- Um pouco - admitiu ela. - Só tem três anos. Ned franziu as
sobrancelhas.
- Ele tem de aprender a enfrentar seus medos. Não terá três
anos para sempre. E o inverno está para chegar.
- Sim - concordou Catelyn. As palavras provocaram-lhe um
arrepio, como sempre. As palavras Stark. Todas as casas
nobres tinham as suas palavras. Lemas de família, pedras de
toque, espécies de orações, que alardeavam honra e glória,
prometiam lealdade e verdade, juravam fé e coragem. Todas,
menos a dos Stark. O inverno está para chegar, diziam as
palavras Stark. Refletiu sobre como aqueles nortenhos eram
um povo estranho, e já não era a primeira vez que o fazia.
- O homem morreu bem, posso lhe assegurar - disse Ned.
Tinha na mão um bocado de couro oleado com o qual fazia
percorrer com leveza a espada enquanto falava, polindo o
metal até soltar um brilho escuro. - Fiquei contente por causa
de Bran. Teria ficado orgulhosa dele.
- Estou sempre orgulhosa de Bran - Catelyn respondeu,
observando a espada enquanto ele a esfregava. Conseguia ver
as ondulações profundas do aço, onde o metal fora dobrado
sobre si próprio cem vezes durante a forja. Catelyn não sentia
qualquer amor por espadas, mas não podia negar que Gelo
possuía sua beleza. Tinha sido forjada em Valíria antes de a
destruição ter caído sobre a antiga cidade franca, quando os
ferreiros trabalhavam seus metais tanto com feitiços como
com martelos. Tinha já quatrocentos anos, e era tão aguçada
como no dia em que fora forjada. O nome que ostentava era
ainda mais antigo, um legado da era dos heróis, quando os
Stark eram reis no Norte.
- Foi o quarto este ano - disse Ned sombriamente. - O pobre
homem estava meio louco. Algo lhe incutiu um medo tão
profundo que minhas palavras não o alcançaram - suspirou. -
Ben escreveu-me dizendo que a força da Patrulha da Noite já
não tem mil homens. Não são só deserções. Tem também
perdido homens nas patrulhas.
- São os selvagens? - ela perguntou.
- Quem mais poderia ser? - Ned ergueu Gelo e observou o aço
frio ao longo de todo seu comprimento. - E só vai piorar. Pode
chegar o dia em que eu não tenha escolha a não ser reunir os
vassalos e marchar para o norte a fim de lidar de uma vez por
todas com esse Rei-para-lá-da-Muralha.
- Para lá da Muralha? - a idéia fez Catelyn estremecer.
Ned viu o terror no seu rosto.
- Mance Rayder não é nada que devamos temer.
- Há coisas mais escuras para lá da Muralha - ela olhou de
relance a árvore-coração às suas costas, a casca clara e os
olhos vermelhos, observando, escutando, pensando seus
longos e lentos pensamentos.
O sorriso dele era gentil.
- Você ouve em demasia as histórias da Velha Ama. Os Outros
estão tão mortos como os filhos da floresta, desaparecidos há
oito mil anos. Meistre Luwin lhe diria que nunca sequer
chegaram a estar vivos. Nenhum homem vivo alguma vez viu
um.
- Até hoje de manhã, nenhum homem vivo tinha visto um
lobo gigante - recordou Catelyn.
- Já devia saber que não se pode discutir com uma Tully - ele
disse com um sorriso triste e devolveu Gelo à sua bainha. -
Não veio até aqui me contar histórias de embalar. Sei bem
como gosta pouco deste lugar. Que se passa, minha senhora?
Catelyn tomou nas suas a mão do marido.
- Hoje chegaram dolorosas novas, meu senhor. Não quis
incomodá-lo até se ter purificado - não havia maneira de
suavizar o golpe, e ela o disse sem rodeios. - Lamento tanto,
meu amor. Jon Arryn está morto.
Os olhos dele encontraram os dela, e Catelyn viu como lhe
custou, como sabia que custaria. Na juventude, Ned tinha
sido acolhido no Ninho da Águia, e Lorde Arryn, que não
tinha filhos seus, tinha se tornado um segundo pai para ele e
para o seu outro protegido, Robert Baratheon. Quando o Rei
Aerys n Targaryen, o Louco, exigira suas cabeças, o Senhor
do Ninho da Águia erguera em revolta os seus estandartes da
lua e do falcão em vez de entregar aqueles que jurara
proteger.
E um dia, há quinze anos, seu segundo pai tinha se
transformado também num irmão, quando ele e Ned se
juntaram no septo de Correrrio para desposar duas irmãs, as
filhas de Lorde Hoster Tully,
-Jon... - Ned disse. - Esta notícia é segura?
- Trazia o selo do rei, e a carta vinha escrita na caligrafia do
próprio Robert. Guardei-a para você. Diz que Lorde Arryn
partiu depressa. Nem Meistre Pycelle pôde fazer alguma
coisa, mas trouxe o leite da papoula, para que Jon não ficasse
por muito tempo em sofrimento.
- Isto foi uma pequena misericórdia, suponho - ele disse.
Catelyn via o pesar em seu rosto, mas mesmo nesse momento
seu primeiro pensamento era-lhe dedicado. - A sua irmã -
disse Ned. - E o filho de Jon. Que notícias há deles?
- A mensagem dizia apenas que estavam bem e que tinham
regressado ao Ninho da Águia - ela respondeu. - Eu preferia
que tivessem ido para Correrrio. O Ninho da Águia é um
lugar alto e solitário, e sempre foi o lugar de Jon, não deles. A
memória de Lorde Jon assombrará cada pedra. Conheço
minha irmã. Ela precisa do conforto da família e dos amigos
ao seu redor.
- Seu tio espera no Vale, não é verdade? Ouvi dizer que Jon o
nomeou Cavaleiro do Portão. Catelyn anuiu com a cabeça.
- Brynden fará por ela e pelo rapaz o que puder. E algum
conforto, mas mesmo assim...
- Vá ter com ela - Ned tentou animá-la. - Leva as crianças.
Encha aqueles salões de ruído, gritos e risos. Aquele rapaz
precisa de outras crianças a sua volta, e Lysa não deve ficar
só na sua dor.
- Gostaria de poder fazer isso - disse Catelyn. - A carta trazia
outras notícias. O rei viaja para Winterfell à sua procura.
Ned precisou de um momento para ver o sentido daquelas
palavras, mas, quando as compreendeu, a escuridão
abandonou seus olhos.
- Robert vem para cá? - quando ela anuiu, um sorriso abriu-se
no seu rosto.
Catelyn desejou poder compartilhar da alegria do marido.
Mas ouvira o que se dizia pelos pátios; um lobo gigante morto
na neve, com um chifre partido na garganta. O terror
retorcia-se no seu interior como uma serpente, mas forçou-se
a sorrir para aquele homem que amava, aquele homem que
não punha fé alguma nos sinais.
- Sabia que te agradaria - disse. - Deveríamos enviar uma
mensagem ao seu irmão, na Muralha.
- Sim, claro - ele concordou. - Ben vai querer estar aqui. Direi
a Meistre Luwin para enviar sua ave mais rápida - Ned
ergueu-se e ajudou a esposa a pôr-se em pé. - Demônios,
quantos anos já se passaram? E não nos dá mais notícias do
que estas? A mensagem dizia quantos homens traz na
comitiva?
- Penso que um cento de cavaleiros, pelo menos, com todos os
seus servidores, e vez e meia este número de cavaleiros livres.
Cersei e as crianças viajam com eles.
- Robert virá em passo moderado por causa delas - disse Ned.
- Ainda bem. Teremos mais tempo para nos preparar.
- Os irmãos da rainha também vêm na comitiva - ela
completou.
Ao ouvir aquilo, Ned fez um trejeito. Catelyn sabia que pouca
simpatia havia entre ele e a família da rainha. Os Lannister
de Rochedo Casterly tinham chegado tarde à causa de
Robert, quando a vitória era praticamente certa, e ele nunca
os perdoara por isso.
- Bem, se o preço a pagar pela companhia de Robert é uma
infestação de Lannister, que seja. Parece que Robert traz
metade da corte.
- Aonde o rei vai, o reino segue - ela respondeu.
- Será bom ver as crianças. O mais novo ainda mamava da
teta da Lannister da última vez que o vi. Agora deve ter o
quê? Cinco anos?
- O Príncipe Tommen tem sete anos. A mesma idade de Bran.
Por favor, Ned, tenha tento na língua. Lannister é nossa
rainha, e diz-se que seu orgulho cresce a cada ano que passa.
Ned apertou-lhe a mão.
- Terá de haver um festim, bem-composto, com cantores, e
Robert vai querer caçar. Enviarei Jory para o sul com uma
guarda de honra ao seu encontro, a fim de escoltá-los no
caminho até aqui pela estrada do rei. Deuses, como iremos
alimentar a todos? Maldito seja o homem. Maldito seja o seu
real couro.
Humberto Lopes
Humberto Lopes
Membro

Mensagens : 46
Pontos : 129
Reputação : 0

https://leitoreseescritores.directorioforuns.com

Ir para o topo Ir para baixo

Ir para o topo

- Tópicos semelhantes

 
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos